Não são pássaros, são imigrantes numa cerca

Birdie, o espectáculo que abre esta quarta-feira o 18.º FIMFA, cruza uma fotografia captada na fronteira que separa África e União Europeia com o cinema de Hitchcock. A companhia catalã Agrupación Senõr Serrano quer que estejamos atentos aos mecanismos da manipulação audiovisual.

Foto
PASQUAL GORRIZ

No final de 2014, uma fotografia de José Palazón espalhou-se pela generalidade dos jornais espanhóis. Captada em Melilla, uma pequena cidade espanhola plantada em pleno continente africano, virada para o Mar de Alborão mas rodeada por território marroquino, a imagem de Palazón mostrava dois golfistas ensaiando uma tacada enquanto, em fundo, uma dezena de imigrantes se empoleirava numa cerca que separa África da União Europeia.

Quando os olhos de Àlex Serrano, Ferran Dordal e Pau Palacios, da companhia catalã Agrupación Señor Serrano, bateram naquela imagem tão inquietante, os três não demoraram muito a intuir que estavam diante do ponto de partida para uma nova criação. “Não tínhamos ainda a certeza se aquela imagem escondia um espectáculo atrás de si”, diz Pau Palacios ao PÚBLICO, “mas havia algo naquela foto e decidimos que iríamos partir dali para criar uma peça baseada no tema das migrações”. Sem cair na tentação documental, que o grupo tenta evitar, começaram então a esboçar Birdie, espectáculo que abre esta quinta-feira o 18.º FIMFA (Festival Internacional de Marionetas e Formas Animadas), com apresentações no Teatro Maria Matos, Lisboa, de 3 a 5 de Maio.

“Quando começámos a pensar no que íamos fazer”, revela Pau Palacios, “não tínhamos intenção de usar a fotografia em cena, mas começámos a investigar o tema, a reflectir sobre diferentes maneiras de o explorar e, no final, a fotografia acabou por se impor. Era tão interessante e impactante que decidimos centrar-nos nela e retirar todos os símbolos e todas as possibilidades que nos oferecia”. Essa ideia, na verdade, estava em linha com os preceitos artísticos de uma companhia que gosta de evitar espectáculos demasiado ancorados na realidade e prefere as metáforas a uma abordagem directa dos fenómenos que se propõe considerar.

Concentrada a atenção na imagem de Palazón, a metáfora inicial não demorou a revelar-se: “Estes rapazes que estavam em cima da cerca pareciam-nos pássaros em cima de um arame. E então pensámos como seria ridículo tentar colocar uma cerca para tentar travar a migração dos pássaros. Claro que a migração de pássaros e de humanos não é a mesma coisa, mas o acto de migrar é constante no mundo”, reflecte Palacios.

Fatalmente, veio-lhes de imediato à cabeça o filme Os Pássaros, de Hitchcock, que acabaria por contaminar também a obra. Mais uma vez, era quase automática a ligação que se podia estabelecer com o episódio real que desencadeara todo o processo: “No filme de Hitchcock, não é claro aquilo que os pássaros representam, não há explicação evidente para o que acontece. O que fica claro é que eles geram medo. E então interessava-nos pensar por que razão estes pássaros, os migrantes, também geram medo, porque projectamos os nossos próprios medos e inseguranças neles.”

Dois mil animais

A fotografia de José Palazón cumpre ainda um outro propósito em Birdie. Se a cultura visual dos nossos dias dita que as imagens veiculadas por plataformas como o Facebook e o Instagram, ou mesmo pelos jornais, não mereçam mais do que uma observação fugaz – a Agrupación Señor Serrano cita estudos que quantificam o tempo disponível para observar uma fotografia numa média de dois segundos e meio –, em palco os catalães dedicam 15 minutos a analisar as várias camadas de informação que se podem extrair da fixação daquele instante. Ainda que, pormenor de importância fulcral, a análise exclua aquilo que tem de mais óbvio: os imigrantes. Classificando-os como pássaros, os três performers em cena fingem não ver aqueles corpos na cerca, entre uma vida e outra; ignoram-nos, tal como os golfistas. “Falamos da imigração nesta foto através da sua omissão”, resume Pau Palacios.

Essa omissão, no entanto, acaba por quebrar-se quando se identifica a origem de vários elementos da foto: os golfistas espanhóis, as roupas fabricadas na China, as palmeiras importadas da Argélia… O espectador já não tem como se espantar, depois, quando dois mil animais em miniatura se aproximam de uma zona de fronteira, após atravessarem zonas de guerras ou poços de petróleo, e a passagem lhes é barrada, enquanto o tráfego de mercadorias se continua a fazer de forma ininterrupta.

Esse filme em tempo real que é construído em palco, captando a manipulação de objectos e maquetas sobre um relvado que prolonga o green do campo de golfe, inscreve-se também num jogo que os catalães se propõem partilhar com o público. Porque se os objectos “à vista desarmada não têm um objectivo óbvio, eles ganham sentido através da câmara e da narração”, sublinhando a manipulação audiovisual que Birdie também quer abordar. “Em todos os nossos espectáculos”, explica Palacios, “existe essa ideia de que o relato audiovisual não é a verdade, é uma construção". O que contrapropõem, à vista de todos, é "um relato com muitas mentiras", mas em que o truque não se esconde, antes é exibido, para assim expor mecanismos que criam falsas verdades e factos que podem afinal não o ser.

Na verdade, o facto que mais interessa à Agrupación Señor Serrano é o de que todos os seres humanos partiram de África e depois se espalharam pelo planeta. Um facto que serve para questionar o porquê de censurar uns miúdos (no caso) que simplesmente repetem o mesmo gesto que a humanidade vem fazendo há centenas de milhares de anos.

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