Elas (ainda) sonham viver da escrita

Raquel está a tentar editar o primeiro livro, de contos, e até lançou uma campanha de crowdfunding. Filipa já conseguiu publicar dois romances e está no top dos 100 mais vendidos na Amazon. Em comum têm a vontade de viver da escrita a tempo inteiro.

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Raquel Caldeviila é psicóloga de formação e, aos 30, acredita que é a escrita que pode mudar a sua vida Ana Marques Maia

Em 2023, Raquel Caldevilla imagina-se a escrever compulsivamente — “muito melhor do que escrevo agora”. “O fascínio é poder estar a fazê-lo, como qualquer outro artista, que nunca está satisfeito com o que faz mas que se sente, ao mesmo tempo, calmo com isso”, confessa ao P3. Neta de poeta, esta psicóloga de formação sempre gostou de escrever — e sempre o fez naturalmente. Com 30 anos, tenta editar o primeiro livro, de contos, mas este não é um processo simples para quem começa.

Para contornar a dificuldade de acesso às editoras convencionais, Raquel, natural do Porto, decidiu recorrer ao crowdfunding e à colaboração de amigos (designers, fotógrafos, ilustradores). Lançou uma campanha na plataforma Indiegogo, em português e inglês, em que explicava o projecto — doze contos fundamentados na sua experiência enquanto psicóloga. “Terá o aspecto de um livro de contos infantis, mas cada história terá a profundidade que só os adultos conseguem entender.”

Aos 30, Raquel está longe de ter a vida que achava que ia ter há dez anos. Não está a exercer Psicologia nem a trabalhar com crianças, não tem uma vida profissional estabilizada. Está “há demasiado tempo a investir em coisas que não dão resultado”. A escrita, sente-o, há-de ser o caminho — mesmo que a campanha de crowdfunding não tenha atingido os objectivos. Ao dinheiro angariado, Raquel vai, agora, juntar poupanças e concretizar o sonho.

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“Acho que toda a gente tem aquela visão romântica do escritor sozinho, diz Filipa Nuno Ferreira Santos

O livro de contos de Raquel apareceu quando o trabalho terminou, em 2012. Desempregada, criou um blogue, que inicialmente se dedicava mais à fotografia e à psicologia mas que logo resvalou para a escrita. A participação, com um conto, num concurso de jovens criadores foi o incentivo que faltava para que se dedicasse por inteiro às palavras. Vai recorrer à Bubok, “um serviço de auto-publicação que torna possível transformar um texto num livro — em papel e digital”. Quem o explica é Alexandre Lemos, country manager da plataforma, que aponta o facto de a publicação ser gratuita como uma das vantagens. “Deixa que sejam os autores a escolher o que investir nos seus livros e na promoção que querem fazer”, diz ao P3.

A portuguesa no top 100 da Amazon 

É também através de um blogue que Filipa Fonseca Silva se dá a conhecer ao público. Há dois anos, esta publicitária de 34 anos editou o primeiro livro — Os 30, Nada é Como Sonhámos, pela Oficina do Livro — e foi então que percebeu que podia sonhar em viver apenas da escrita. “Acho que toda a gente tem aquela visão romântica do escritor sozinho, com um computador em frente, isolado. Mas, de facto, a realidade não é essa”, ressalva. Filipa escreve no pouco tempo livre que vai tendo, entre a publicidade e uma filha pequena.

Para quem começou a criar histórias e contos assim que aprendeu a escrever, integrar o top 100 dos livros mais vendidos da Amazon foi o atingir de dois objectivos: ter sucesso com a escrita e internacionalizar uma obra portuguesa, algo complicado e pelo qual Filipa lutou sem o apoio da editora. Pagou a um tradutor e passou a tratar por tu a plataforma de edição da Amazon, num exemplo de democratização da escrita que estas novas ferramentas podem proporcionar. “Sempre achei que Os 30... era um livro que interessaria a um público que não fosse apenas português”, diz. “É um sentimento muito comum à cultura ocidental, esta coisa de se chegar aos 30 anos e fazer um balanço.”

O estranho ano de Vanessa M., lançado em Maio deste ano, é o segundo livro de Filipa, cujo tipo de escrita descreve como “cinematográfica”, com “histórias muito reais e do nosso tempo”. Se gostava de poder que era escritora a tempo inteiro? Claro, mas ainda não o pode fazer — ainda que, diariamente, o que mais faça seja escrever, no caso textos publicitários.

O terceiro romance “ainda não está alinhavado” porque, no último ano, dedicou muito tempo a promover os outros dois livros. Na gaveta estão, ainda, “três livros infantis” já escritos e um projecto, baseado no blogue, com crónicas sobre coisas que aprendeu depois de ser mãe. Só precisa de tempo para se organizar — procurar viver dos livros é “complicado”.

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