Anjos ou demónios?

Ter um serviço telefónico de exorcismo 24 horas por dia para aldrabar gente com problemas graves não me parece sério nem de gente com mais de três neurónios

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Nelson Nunes

Numa habitual viagem de comboio na peculiar linha de Sintra, um sujeito interrompe-me a leitura para me entregar um pequeno panfleto. Na capa, um olho franzido observa-me carregado de raiva. Ao lado, a palavra exorcismo escrita em capitulares ameaçadores obriga-me a abrir o opúsculo. Lá dentro, oferecem ajuda e avisam-me que um de vários seguintes sintomas pode significar que a minha pessoa pura e singela esteja possuída por um qualquer demónio. Coisas que vão das simples insónias, dores de cabeça, vários fracassos sentimentais e acessos de raiva a obsessão por defuntos, gosto por sangue ou vontade de comer recém-nascidos. Desculpem lá: um de vários? Então só pode ser isso, tenho Satanás a morar em mim. Eu e o resto do mundo.


Não me interpretem mal: não tenho qualquer objecção a ideias relacionadas com a fornalha do Belzebu. Pelo contrário. Se me derem a escolher entre as nuvens fofinhas do Éden e o calor acolhedor do Inferno, começo já a descer. Lá em baixo, a música é muito melhor e as miúdas são claramente mais divertidas. Além disso, as companhias são sempre melhores em casa do Lúcifer. Alguém acredita que o Kurt está em amena cavaqueira com o Jim, a Janis, o Randy, o Layne e o Jimi no Paraíso? Poupem-me.


Agora a sério. É verdade que tempos austeros trazem ao de cima os piores sentimentos na mente humana. O desespero por uma vida melhor causa distúrbios sérios e graves na vida de qualquer um e ninguém pode censurá-los. Por outro lado, quem sou eu para dizer que não existam casos reais de possessão ou outras manifestações sobrenaturais? De qualquer forma, ter um serviço telefónico 24 horas por dia para aldrabar gente com problemas graves não me parece sério nem de gente com mais de três neurónios.


Estar “possuído” não será, na esmagadora maioria dos casos, mais do que sofrer de condições psíquicas que exijam acompanhamento especializado. O famosíssimo psiquiatra Oliver Sacks escreveu diversas obras carregadas de interesse (profissional ou amador) sobre casos que poderiam aparentar estar pejados de esoterismos ou outras maluqueiras próprias do computador de bordo que trazemos no alto da pinha. Duas das melhores, na minha modesta opinião, são "O Homem que Confundia a Mulher com um Chapéu" e "Alucinações", ambas publicadas pela Relógio d’Água.


Portanto, se alguém disser que está possuído por ter atirado um palavrão descontrolado ao computador que não trabalha, não acreditem. Estão apenas a ser humanos. E, já agora, se te apetecer um recém-nascido à lagareiro, vai até à despensa ou ao frigorífico que isso passa.

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