(Des)Amarrar a diferença

Vai daí, a pergunta impõe-se: será que não podemos trocar os cachorrinhos, as poses de bailarina, os pénis erectos e o latex de designer por outras coisas?

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Daniel Cardoso
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Entre a publicidade sexista, os piropos no espaço público e os grafitis podemos encontrar um tema comum: tanto mulheres como homens se encontram representados, mas não da mesma maneira. Ou antes: de maneiras diferentes entre si, mas semelhantes entre os vários meios. Se juntarmos a isto verdadeiros sucessos de vendas como é o caso das “Cinquenta Sombras de Gray” (sim, adivinharam, os mesmos tropos de representação), com o efeito ‘exótico’ de se abordar aquilo que parece ser BDSM – mas na verdade é mais violência doméstica e assédio, pronto – é compreensível que existam muitas pessoas a reclamar por um excesso de sexualização nos media e no nosso quotidiano.

Só que fica a dúvida se a fatiga não vem de vermos sempre os mesmos tropos, os mesmos clichés, e não de vermos o mesmo tema. Afinal de contas, todos os dias contactamos com vários ‘mesmos temas’, vez após vez, e não nos queixamos assim tanto. Comida, romance, desporto, dinheiro: também são temas que vemos representados diariamente, mas que não parecem incomodar particularmente nenhuma secção da sociedade.

Temos, claramente, problemas de representação, enquanto sociedade. Afinal de contas, o papel higiénico vem com cachorrinhos adoráveis (há alguém que pense em cachorrinhos adoráveis enquanto usa papel higiénico?) e os tampões com aplicador dão para usar com uma mão só, sem olhar, e sem perder a pose de bailarina (vale mesmo a pena comentar?). E do outro lado, temos os desenhos de pénis a adornar paredes e casas-de-banho sem fim (ah, a virilidade, o poder, a agressividade, a erecção!), e um sem-fim de cabedal, latex, correntes, glamour e muito dinheiro a adornar a ideia de BDSM (até nas personagens ficcionais).

Vai daí, a pergunta impõe-se: será que não podemos trocar os cachorrinhos, as poses de bailarina, os pénis erectos e o latex de designer por outras coisas? Se olharmos para as notícias, filmes e videoclips, dir-se-ia que não. Mas afinal sim, e um exemplo disso veio dar um pulinho a Portugal, vindo da Alemanha.

A artista, performer e activista Ann Antidote tem, ainda durante sexta e sábado (4 e 5 de Outubro, entre as 18h00 e as 22h00), a exposição “Where does your body start?” (Onde começa o teu corpo?), uma instalação multidisciplinar que junta vídeo, fotografia, bondage de inspiração japonesa e a participação voluntária (e interactiva) de qualquer pessoa que visite a galeria. Ah, e uma escultura-vulva de corda (clítoris incluído, claro!) como portal de entrada para o resto da instalação — para quem tiver curiosidade, a galeria é em Santa Apolónia e há mais informação aqui.

Porque é que isto é importante, e não apenas publicidade disfarçada? Razão simples: a visibilidade é um acto político. Para bem e para mal. Se apenas algumas formas de falar ou representar um assunto são visíveis, é quase como se apenas essas existissem – e isso nega a multiplicidade de vidas, pessoas e experiências que por aí existem, cria um clima de discriminação, de clichés cansados e, ao que parece, de branqueamento da violência doméstica e de género.

Venham, então, enquanto é tempo, explorar os limites do que é o corpo, talvez deixar-se enrolar numa representação da vulva que não passa pela mítica ‘vagina dentata’, e ver que não é nas sombras que se vive, necessariamente, o que parece ser diferente.

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