Quando a arquitectura não dorme

Se o estágio é (ou deveria ser) uma iniciação no mundo do trabalho, é inaceitável que empresas usem estagiários para obter mais lucro e se aproveitem da fragilidade da posição para fazê-los trabalhar até a exaustão

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Mario Anzuoni/Reuters

A notícia do jovem estagiário que morreu em Inglaterra, fez-me relembrar questões que sempre foram prementes no diz respeito ao ensino e prática da arquitectura. Uma delas é o regime duro que as universidades de arquitectura impõem aos alunos.

Tendo passado por lá, posso dizer com certeza que ninguém faz o curso sem fazer directas. Fazem-se piadas sobre o facto de os arquitectos serem morcegos, não dormirem, abastecerem-se de café e não verem a luz do sol. Mas a verdade é que não tem absolutamente piada nenhuma e o corpo vai acabar por se manifestar da pior forma.

Os professores são culpados? As universidades são culpadas? Em parte sim, mas não mais que os próprios alunos. Algumas vezes a carga de trabalho é elevada de mais, por vezes os alunos empurram os trabalhos com a barriga e só se lembram de os resolver a última da hora. Seja como for o problema é sério e deveriam ser tomadas medidas!

Porque se é verdade que quando se está no curso se é jovem, se quer ter vida académica e que para muitos é a primeira experiência a viver sozinho, o problema do excesso de horas de trabalho continua depois no estágio e em toda a vida profissional.

O estagiário não é entendido como um verdadeiro trabalhador, hoje em dia é moralmente aceite que os jovens licenciados tenham de provar o que valem, quase como uma praxe laboral. Isso faz com que sejam usados como mão de obra barata, ou até gratuita, criando concorrência desleal no mercado de trabalho. O estagiário, ao ansiar entrar no mundo laboral e ser tratado com dignidade, submete-se e leva a situação até ao limiar do tolerável.

O que agrava a situação do estagiário de arquitectura — e de outras profissões — é obrigatoriedade do estágio para o acesso à respectiva ordem, sem o qual ele nunca se poderá intitular arquitecto em território nacional. Este factor, que parece de pequena importância à partida, faz com que um estagiário de arquitectura se sujeite a condições extremas, como fazer directas, dormir poucas horas ou, como se diz entre arquitectos, tirar cafés. Obviamente que não há mal nenhum em tirar cafés, é apenas uma metáfora para ilustrar a condições de trabalho as quais se está sujeito.

Ora, se o estágio é, ou pelo menos deveria ser, uma iniciação no mundo do trabalho, é inaceitável que empresas usem estagiários para obter mais lucro e se aproveitem da fragilidade da posição para faze-los trabalhar até a exaustão. No caso da arquitectura, é urgente mudar as mentalidades; fazer directas não é fixe, não torna ninguém melhor, não dá ideias geniais, tem consequências e podem ser fatais.

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