A arte de jogar à bola

É rigoroso dizer que o futebol é arte. Normalmente, os amantes de arte sentem um certo asco pela prática futebolística, mas a verdade é que a exibição e a fruição ostensivas do domínio da técnica ajudam a estabelecer o paralelismo

Foto
Nigel Roddis/Reuters

É rigoroso dizer que o futebol é arte. Normalmente, os amantes de arte sentem um certo asco pela prática futebolística, mas a verdade é que a exibição e a fruição ostensivas do domínio da técnica ajudam a estabelecer o paralelismo. Ao mesmo tempo, a emoção associada à prática permitem aproximarmo-nos mais do contexto. Dirão os mais críticos: sim, mas a arte desembrutece o espírito. Digo eu: o futebol também – se se deixarem as clubices de lado.

Em véspera de "derby", não resisto a assumir o meu profundo amor pelo futebol. Pela simples prática, não pelo resto. Pelo jogo em si, pela imprevisibilidade de um resultado, pelo suster da respiração nanossegundos antes do som do rodopiar de uma bola numa rede. Pelos cânticos no estádio e pelas cervejas bebidas com amigos numa esplanada durante uma boa partida.

Não amo nenhum clube. Não tenho problemas em assumir que sou simpatizante do Sporting e que, portanto, estou entusiasmado com este início de campeonato. Ainda assim, não me caem os parentes na lama se confessar que, durante os dois anos que passaram, adorei ver o futebol praticado pelos atletas do Benfica e que, em 2010/2011, tinha uma gigantesca preferência por assistir às partidas do FC Porto. A arte em primeiro lugar.

Amo — isso sim — a prática desportiva em causa. Em brincadeiras com amigos, fui um guarda-redes de capacidades medianas — e estou cada vez pior — e nunca tive como ambição ser jogador de futebol profissional ou jornalista desportivo. Mas, como a música ou a literatura, também o futebol tem um "savoir faire" exclusivo de quem o pratica. Há o pensamento constante na melhor forma de atingir o objectivo final, há a obsessão com a execução perfeita, há o nervoso miudinho segundos antes de entrar em palco (ou, como prefere o gigantesco Manchester United, no “Teatro dos Sonhos”), há a alegria por uma boa performance, há a irritação de uma nota falhada ou de um borrão na pintura. E, claro, há o treino.

Ser jornalista tem esta maravilha de conhecer de perto — por pouco tempo que seja — indivíduos completamente distintos do ambiente natural em que fomos crescendo. Ao longo da minha curta carreira, tenho vindo a dar-me com atletas de alto nível e artistas de grande gabarito. Com as naturais diferenças inerentes às suas profissões, não lhes faço grandes distinções. Uns tratam do corpo como os outros tratam dos instrumentos — é a ferramenta que lhes coloca o pão na mesa. Em tempos de repouso, cuida-se, acarinha-se e atentam-se todos pormenores. Em tempos de acção, leva-se a máquina ao extremo das suas capacidades. No final, uns atiram as guitarras ao ar sem receios de as partir, outros festejam vitórias com piruetas arriscando três semanas no estaleiro em recuperação.

Não me chateia, por isso, que Messis e Ronaldos e Falcões que por aí andam ganhem milhões. Porque também vemos o Matt Bellamy, a Lady Gaga ou o Bono Vox em extravagâncias nada comuns. Movimentam paixões e quase-fanatismos por ter um dom e por o trabalharem obsessivamente praticamente desde o berço. Atrás disso, a inevitável industrialização cultural mete-se ao barulho e o dinheiro surge naturalmente. Todos têm um propósito em comum: ser o melhor naquilo que fazem. E, ao mesmo tempo, dão-nos um prazer do caraças. Que ganhem (sempre) os melhores.

Sugerir correcção
Comentar