Começar com as brancas*

Para comemorar os 80 anos de vida e 60 de trabalho de Siza Vieira, a Ordem dos Arquitectos pediu a colaboradores do arquitecto que escrevessem sobre o que significa trabalhar com o Pritzker 92. Aqui fica o testemunho de Carlos Castanheira

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Adriano Miranda

Começamos sempre com as brancas. Ele, o Siza, o Álvaro Siza começa com as brancas. Nós podemos arrumar o tabuleiro, preparar os espaços e materiais. Até podemos organizar as regras, o calendário, o ritmo, mas as brancas começam primeiro. Não é regra ou lei. É natural e naturalmente óbvio.

O primeiro passo, quase sempre, é apresentado em forma de esquisso. Às vezes este esquisso é já, quase, o final, o xeque-mate, a obra. Está tudo ali. Só falta trabalhar, jogar. Outras vezes mostra as marcas da indecisão e da procura, alguma timidez. Gesto de distração ou tentativa de apropriação do espaço, para, na jogada seguinte, abandonar e tentar outras estratégias, outras jogadas. Com frequência, este gesto volta ao processo e, apesar de não estar na linha de jogo, volta como método de verificação e de algum controlo ou contenção. É necessário verificar jogadas para reforçar estratégias.

As pretas, nós, jogamos. Avançamos com as nossas peças, de acordo com as regras e outras estratégias que conseguimos fazer valer. Esforçamo-nos para acompanhar o pensar, dando luta para que o jogo tenha interesse e resultados elevados. O jogador à nossa frente é experiente e joga vários jogos em simultâneo. Introduzimos jogadas e informação para que o jogo se mantenha e a reação seja imediata, e quase sempre assim é.

Há jogadas que nos parecem claras, lógicas, e nos dão a ilusão de que o jogo está sob controlo. Parece. Outras são desconcertantes, nada racionais, mas onde se percebe que o jogador gosta do que fez mas não sabe bem porque o fez. Procura. Experimenta. Acredita no que faz, pois tem curriculum, mas é desconfiado e gosta de arriscar para depois verificar. Não sabe porque joga assim mas, quase sempre, são jogadas que desconcertam pela elegância. Não é necessário explicar tudo.

Nós acompanhamos e garantimos que o jogo se mantem vivo, dentro do tempo que o relógio marca, de acordo com as regras. O jogo, o projeto, é jogado no nosso campo onde temos as condições e os utensílios necessários a uma rápida compreensão. Quase sempre há vários tabuleiros disponíveis, projetos e jogos em fases ou jogadas mais ou menos avançadas. Marco o ritmo de acordo com as necessidades e com o avanço do jogo, diga-se do projeto.

As respostas umas vezes são rápidas, outras ficam adiadas para outra sessão. Há dias em que o jogo se concentra num só tabuleiro, noutras os jogos mais parecem uma jornada simultânea. Outros há em que o material fica em cima da mesa para ser retomado na próxima vez. Para estudar em casa, num café ou num lugar improvável.

Mas vai sempre a jogo. Reinventa o tabuleiro, as peças. Às vezes até tenta inventar as regras. É persistente. É persistente na persistência. Teimoso, muito, e quase sempre. Mas tem razões para o ser. É necessário acreditar. A teimosia também é método.

Por vezes vem com uma jogada desconcertante que obriga a recomeçar tudo de novo. Desconcertados, tentamos acertar o jogo. Esforçamo-nos. Não. Afinal é só uma jogada de distração. Temos que nos concentrar no tabuleiro e no jogo desenvolvido. É imprevisível. Não. É mesmo uma jogada a que temos de prestar toda a atenção para saber como responder.

No xadrez é regra não se falar, no nosso jogo a discussão é constante e o ambiente descontraído. É normal o acompanhamento vocal: com uma melodia mais ou menos conhecida, muitas vezes velhas glórias, mas sempre divertidas. Às vezes a cantiga cai na repetição e o tema torna-se aborrecido. Temos que introduzir outra melodia. Os dotes vocais, discutíveis, são muitos pois vão do pop, ao jazz e ao lírico. A poesia é presença necessária. Algumas anedotas e outras histórias que, para quem está de fora, poderiam parecer desajustadas também fazem parte do jogo e até lhe introduzem alguma riqueza. Desconcertados por uma jogada que parece menos ajustada perguntamos: porquê este esquisso, esta proposta, esta jogada? Desconcertado por ter sido apanhado ‘em falso’ responde: porque eu gosto! Parece suficiente e é.

Fica claro que o jogo, o xadrez, não é só racional. Há sempre um pouco, por vezes muita, irracionalidade, talvez genialidade, diriam alguns. A resposta basta, não foi a primeira vez, mas é desconcertante e obriga-nos a rever estratégias e materiais. Mais uma vez. É jogo. Como sempre, a nova proposta, a desconcertante, é a mais interessante. Jogada ganhadora. O jogo prossegue com jogadas ritmadas, marcadas pelo relógio e pelo calendário. Apetece esticar o jogo mantendo-o infinito, pelo prazer do jogo, da diversão que obriga a muita transpiração e, como se diz, a alguma imaginação. Não se descansa enquanto o jogo não augura um final com qualidade. Na verdade, este jogo, ou projeto, passará para outros tabuleiros: nós já jogamos com as brancas; outros intervenientes no processo de obra, jogarão com as pretas.

O xadrez exige as brancas e as pretas. E implica regras que devem ser cumpridas. Com criatividade. Não se pode avançar primeiro com as pretas. O jogador das brancas é sempre campeão. Mas, mais do que isso, é parceiro e amigo. É Mestre. Mestre na arte do jogo de projetar a Arquitetura. Já não se joga assim neste acelerado e globalizado planeta. Terá passado de moda?

Joga-se um jogo de cada vez mas como se fosse o único. Talvez o último. Neste campeonato todos os projetos são iguais mas cada um é decisivo para o título. Jogar, mesmo sabendo que nunca vamos jogar com as brancas, é um prazer, uma formação contínua. Muitos jogos se seguirão. Outros tabuleiros nos esperaram. Não sabemos jogar outro jogo.

* citando Eduardo Souto de Moura que usou esta expressão num entrevista a jornalistas ingleses para explicar como é trabalhar/colaborar com Álvaro Siza. (Serralves, Abril de 2005)

 

Este texto foi escrito ao abrigo do novo Acordo Ortográfico. A versão completa pode ser lida aqui.

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