Siza Vieira: uma imaginação totalmente livre, uma crítica absolutamente rigorosa

Para comemorar os 80 anos de vida e 60 de trabalho de Siza Vieira, a Ordem dos Arquitectos pediu a colaboradores do arquitecto que escrevessem sobre o que significa trabalhar com o Pritzker 92. Aqui fica o testemunho de António Madureira

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Manuel Roberto

Nos finais dos anos cinquenta, coroando mais de uma década de enormes esforços de uns quantos Arquitectos na defesa dos princípios da Arquitectura Moderna, contra o Poder que destruíra quase toda uma brilhante geração, empurrada sem remissão para a arquitectura oficial ou para a inactividade, começou timidamente a desenhar-se um movimento novo, visível não só por algumas obras que se salientavam do pobre panorama geral como, mais ainda, pelas manifestações paralelas que foi possível realizar, como as Exposições Magnas e Extra- Escolares na ESBAP, ou palestras, conferências e sessões de divulgação no âmbito do Sindicato Nacional dos Arquitectos.


Adolescente decidido a ser arquitecto, por razões familiares ligado ao meio, tive possibilidade de, ainda estudante do liceu, assistir deslumbrado a muitas dessas actividades, olhos e ouvidos bem abertos, procurando apanhar tudo. Foi nessa época que conheci quatro habitações em Matosinhos, uma outra na Av. da Boavista e um restaurante em acabamentos na Boa Nova, peças de Arquitectura que começavam a ser polémicas. Recordo bem que de tantas e boas obras que nessa altura iam surgindo, foram de facto essas as que indiscutivelmente ganharam desde logo o discutível prestígio de ser simultaneamente as melhores, as piores, as mais belas, as mais horrorosas, as mais sérias e as mais ridículas, dependendo do declarante, do auditório e das circunstâncias, com nítido predomínio das opiniões “bem formadas”, do “bom senso”, isto é, irredutivelmente contra.


Desde o princípio, creio agora que por snobismo e por espírito de contradição característicos da adolescência, de que aliás sempre sofri irremediavelmente, nessa polémica fui sempre a favor. Lembro-me bem do tempo que passei em Matosinhos ou na Boa Nova, olhando, tentando ver. Do arquitecto diziam-se coisa, muitas coisas. Dizia-se por exemplo que era um idiota, que era um génio, um artista, um desportista, que em criança o tinham levado ao santo Padre Cruz na esperança de um milagre, que o Santo Homem tinha aliás feito, que não senhor já não tinha podido fazer nada.


Mais tarde já estudante de Arquitectura, no primeiro atelier em que trabalhei, numa conversa com o patrão, benza-o Deus, comecei a compreender. Dizia o homem, pobre imbecil, que só fazia arquitectura assim quem fosse muito ignorante, senão que se visse como ele próprio que tanto sabia de construção, de regulamentos, em suma da profissão, nunca arriscaria fazer daquilo porque via logo muito bem no que se ia meter.


Na altura não se usava falar de metodologia, palavra então reservada às actividades pedagógicas, designadamente ao ensino liceal não sei porquê, mas foi essa uma das mais importantes descobertas que fiz no campo da metodologia do projecto.


Foi também a mais ingénua, honesta e lapidar justificação da mediocridade em nome da sabedoria que me foi dado ouvir. Devo-lhe isso.


Por uma daquelas voltas que a vida dá, quando já tinha decidido que estava farto de ateliers que não me serviam e a que eu também não servia, quando já pensava que a profissão afinal não me interessava, tive notícia que o Siza precisava de alguém que “passasse a tinta” e fui trabalhar para o atelier dele.

Desse tempo o que é pessoal é meu e não partilhável, pelo que neste depoimento serão ausentes os aspectos pessoais que necessariamente se criam em muitos anos de trabalho em conjunto. Não há que referir a sua predilecção pela poesia de Fernando Pessoa se bem que eu esteja ainda agora convencido que, durante as noitadas de trabalho desvairado, ele recitasse trocando versos inteiros (tenho para mim que alguns seriam mesmo inventados), como também não há que falar das suas tão pessoais interpretações de árias de ópera designadamente “Salut demeure chaste et pure” em que, atrevo-me a dizer, desafinava. Não interessa falar da proverbial capacidade de se esquecer das horas, das chaves ou de outra menos importante coisa qualquer, como não há que referir a mais que discutível maneira como conduzia e tratava o carro.


Procure-se então o que fazia e ainda faz com que os seus projectos e as suas obras fossem e são diferentes. Talvez haja algo de verdade no comentário invejoso do outro pateta. De facto há uma atitude inicial que tem alguma coisa a ver com ignorância; é uma atitude de total disponibilidade para ver, para agarrar o que é essencial, sempre como se primeira vez se tratasse, desconfiando do estabelecido, recusando o óbvio, o que é fácil.


Há uma imaginação totalmente livre que avança uma hipótese, resposta formal quase imediata, sempre imprevisível. Nas primeiras ideias, nos primeiros esquissos, já está tudo que é essencial. Sempre.


É a fase do trabalho feita fora do atelier, em casa, no café , em qualquer lado, qualquer ambiente, qualquer papel, só mesmo quem é capaz de se esquecer das horas, das chaves ou de qualquer outra coisa, se pode concentrar assim. Absolutamente pessoal, ferozmente individual, esse é o aspecto do seu trabalho que mais tem fascinado os teóricos, na vertigem da busca da explicação do processo. Deixo-lhes, com prazer, a tarefa.


Depois é a outra fase, essa no estirador, colectiva, demorada ,de crítica absolutamente rigorosa, de exploração do potencial das ideias e das formas iniciais, de avanços alegres, e recuos penosos, de noitadas, de fadiga, de entusiasmos e desesperos, até tudo bater certo. São meses de trabalho. Foram anos de vida.


Cinquenta já lá vão...

Um abraço! 

António

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