Os espaços públicos e os tumultos na Turquia

As manifestações a que assistimos são um sinal evidente e preocupante do descontentamento da população com os seus responsáveis políticos. E o espaço público constitui o melhor observatório para registar tais transformações

Foto
Osman Orsal/Reuters

Na semana passada espoletaram duros confrontos sociais em Istambul, que rapidamente alastraram para outras cidades da Turquia (e que alguns assumem, erradamente, como uma continuação da Primavera Árabe). Manifestações, dezenas de feridos, um jovem de 22 anos morto, recursos sistemático a gás lacrimogéneo, encerramento de serviços públicos e privados, as consequências têm vindo a ser amplamente difundidas pelos media nacionais e internacionais.

É contudo importante reconhecer o acontecimento que espoletou esta revolta social, no qual se exige a demissão do Governo turco, liderado por Recep Tayyip Erdogan há 10 anos: um novo plano de urbanização no centro de Istambul, com a construção de um novo centro comercial, destruindo o Parque Gezi, uma das poucas áreas verdes da cidade, com exemplares arbóreos de grandes dimensões, e alterando significativamente a configuração da Praça Taksim.

O novo centro comercial concentraria no seu interior novas áreas verdes de cariz social, impondo uma linguagem arquitectónica que recupera a herança otomana (um comportamento que o Governo local tem vindo a reforçar nos últimos anos, impondo uma visão cultural e religiosa cada vez mais restrita), eliminando assim uma vasta área de utilização pública desenhada pelo arquitecto francês Henri Prost nos anos 40 do século passado.

Os espaços públicos constituem um dos suportes fundacionais da nossa sociedade e das nossas cidades. Invocando as palavras do arquitecto Nuno Portas, "O que dá unidade (à cidade) não são as fachadas todas iguais […] O que dá unidade é a qualidade do espaço público que as ordena, a sucessão de ruas, largos e praças. […] Os vazios são formas que ordenam. São por vezes seculares e legíveis. Braga ainda tem a marca das ruas romanas. Mas onde estão as casas? Os edifícios gastam-se mais depressa". 

Poderíamos recordar testemunhos intemporais como o filme "Amarcord", do cineasta Federico Fellini ou o movimento contra-cultural da Movida Madrileña como demonstrações dessa mesma importância. É aliás interessante identificar os espaços públicos ligados às grandes revoluções: o Largo do Carmo no 25 de Abril, a Praça Tahrir, no Cairo, o espaço público da Mesquita Umayyad em Damasco (Síria), a Praça Wenceslas em Praga ou a Praça de Tiananmen em Pequim. É no espaço público que os cidadãos gritam os seus anseios e descontentamentos, demonstram o seu poder e criam as bases para novas ordens sociais.


As intervenções neste tipo de espaços, para além dos efeitos directos, acarretam consequências por vezes imprevisíveis que têm de ser devidamente ponderadas pelos decisores. E é contra uma postura autista e autoritária que os turcos se manifestam pelos dias de hoje. Lutam por mostrar aos seus representantes políticos que os seus jardins, parques e praças fazem parte de um património de todos e que assim dever-se-á manter.


A cidade, sendo construída por cada um de nós, ultrapassa a visão individualista e eleva-se à construção de referência do homem. E o espaço público dever-se-á manter como a expressão máxima da democracia e da pluralidade. E, num processo que até poderíamos caracterizar como contraditório, os manifestantes destroem lojas, emulam caixotes do lixo e inscrevem palavras de guerra nas paredes.

Contudo, e recordando o testemunho do arquitecto Antonio Angelillo, "o fim do regime foi marcado pela destruição física das suas representações simbólicas, que as sustentava e representava". Ninguém consegue adivinhar um fim para os episódios de violência na Turquia, mas será fundamental ler os sinais que vão sendo apresentados diariamente nos noticiários e aprender com os erros cometidos.

Sugerir correcção
Comentar