Morar em São Tomé: a vida de uma professora “brancaé”

Paula Felícia mudou-se para São Tomé para satisfazer duas das coisas que mais gosta: ensinar e o “bichinho” das ilhas africanas. E não podia estar a correr melhor

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Tenho a certeza que ao ler o título a Paula se sentiu dividida entre um “que nervos” e uma boa gargalhada. Isto porque chamarem-lhe “brancaé” diariamente e constantemente a deixa “furiosa”. Mas como gosto de uma boa provocação e “brancaé” me soa deliciosamente bem, não resisti. Adiante.

Conheci a Paula através de amigos em comum e aquilo que me fez querer aprofundar o contacto ao ponto de escrever esta crónica foi um antigo desejo de visitar São Tomé e Príncipe. Algo que esteve para acontecer há 15 anos (fui desviado para a Colômbia) e que tenho vindo a adiar. Até um dia, espero. Da curiosidade à troca de mensagens foi um instante. Percebi de imediato que a Paula, como todos os transmontanos que tenho conhecido, é gente boa e uma aventureira. Um cenário perfeito, pois então.

Mas falemos da Paula. Quem é e o que faz? Natural de Justes, uma aldeia no concelho de Vila Real, estudou Matemática na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. Escolheu a via pedagógica e, um pouco envolvida pela dúvida se realmente queria ser professora, foi lecionar para São Nicolau, uma ilha de Cabo Verde. Lá descobriu uma outra realidade e o “bichinho” de África. O ensino, e tudo o que a este está associado, acabaria por passar a fazer parte da sua vida desde então.

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Lagoa Azul

Regressou a Portugal mas, como a própria diz, “a primeira experiência em terras africanas foi de tal intensidade que resolvi repetir a façanha”. E, desta vez, escolheu como destino São Tomé e Príncipe, porque “as ilhas fascinam-me. Adoro o sol, o mar e toda a energia que elas me transmitem”, revela. E por lá tem estado nos últimos sete meses.

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Jorge Baldaia escreve quinzenalmente a rubrica Notícias do Lado de Lá

A Paula está em São Tomé ao abrigo do projeto escola +, a cargo do Instituto Marquês de Valle Flôr e em cooperação com o Ministério da Educação português, e para o ano letivo de 2012/13. Leciona as disciplinas de Matemática A e B e desempenha funções de diretora de turma. Mas não só.

De acordo com a Paula, as suas funções envolvem ainda o acompanhamento de professores santomenses, ajudando-os “a desenvolver mais as suas capacidades e melhorar os seus conhecimentos científicos. Ajudo na elaboração da planificação das aulas, das fichas de avaliação e em tudo o que eles precisarem. Além destas tarefas também sou responsável por um espaço de nome KeMese. Um centro de recursos para professores, a que estes recorrem para fotocópias e internet, entre outras coisas. Faço a contabilidade e ajudo a resolver os problemas que diariamente surgem, como a manutenção do equipamento, encomendas, gestão do 'stock', etc.”. Uma verdadeira super professora. Como gostava de ter tido tantas assim, em particular a matemática.

Uma beleza natural

A história de São Tomé e Príncipe é semelhante à de muitas antigas colónias portuguesas. Locais desabitados onde se explorou o cultivo de cacau, café e cana-de-açúcar à custa de escravos importados do continente africano. Muitas mudanças até chegar a maior: independência em 1975. Desde então que pouco ou nada mudou em aspetos básicos e que consideramos necessários para o desenvolvimento de um país. No entanto, e recentemente, o país está a procurar alterar o rumo das coisas. Aposta forte no turismo e, quem diria, poderá entrar no negócio da prospeção de petróleo. A confirmarem-se as notícias dos últimos anos e o futuro poderá ser bem diferente do presente. A ver vamos.

Para já, tem um “clima fantástico, com sol e chuva quase todos os dias, mas sempre com uma temperatura a rondar os 30ºC, o que torna a ilha num imenso verde, com uma vegetação lindíssima e fogaz”, descreve. Mas também as pessoas parecem fazer a diferença: “São humildes, mas com um grande coração, simpáticas e afáveis. Aqui, encontrei alguns amigos que irão ficar no coração”, confessa. Uma realidade que foi descobrindo através dos seus passeios e longas caminhadas. Aliás, a única coisa que parece não agradar à Paula é mesmo a tal história diária da “brancaé”.

Sobre a sociedade local, carateriza-a como sendo “bastante heterogénea”. E existe “uma grande discrepância entre ricos e pobres”. Já os costumes são “muito parecidos com os nossos, mas com uma diferença (atraso) de aproximadamente 50 anos em muitos casos. Não se pode entrar de calções nem de ombros descobertos nos locais de atendimento público, nem mesmo no hospital. A roupa para ir para a escola tem que ser cuidadosamente escolhida e os alunos têm uniforme. Raramente se veem casais de namorados de mão dada e muito menos a dar um beijo”, aponta.

Mas, como em todo o lado, as aparências iludem e a moralidade esmorece quando chega a noite. De acordo com a Paula “as festas noturnas multiplicam-se e todos os dias existe um local com grande animação, onde reinam os calções e vestidos curtos e justos, ao som da tarraxinha - um estilo local de música e de dança”. Quando o acesso à informação é bastante limitado, os centros comerciais ou salas de cinema são uma miragem, e se vive com cerca de 1Euro por dia, dançar parece uma boa opção para se passar o tempo e divertir.

E apesar de São Tomé ter “praias lindíssimas e locais magníficos onde a água toma tons de azul e verde que fascinam” e com temperaturas que a obrigam “a passar horas dentro desta a conversar”, a Paula sente falta do seu Portugal. Falta da comida, da família, dos amigos e do seu carro (compreendo-a perfeitamente porque eu próprio já não conduzo há quase cinco meses). Português que é português – neste caso portuguesa – sente sempre na alma essa coisa que dizem chamar-se saudade. Não há volta a dar.

Mas a verdade é que a saudade parece ter peso quando se fala do futuro. A Paula não tem dúvidas em afirmar que esse futuro “passará por voltar a Portugal e levar no peito mais uma experiência fantástica, com mais uma mudança interior de valores e atitudes. Cresci muito com este retorno a terras africanas: mostrou-me que é simples ser feliz com tão pouco”. Arrisco dizer que não sentirá grandes diferenças no regresso. Também por terras lusas, atualmente, se vive com pouco. E sem, infelizmente, a alegria com que se vive em São Tomé e Príncipe.

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