E viveram felizes para sempre: a terra prometida, nunca encontrada…

Ninguém vive, nunca viveu, nem nunca viverá apaixonado para sempre pela mesma pessoa! Os neurologistas que estudam a paixão já demonstraram como a paixão se exaure ao fim de dois anos

Foto
Kim Hong-Ji/Reuters

Apesar de vivermos na modernidade, com tecnologia, globalização, multiculturalismo e progresso há certas ideias, certos preconceitos, que perduram sem que nada os sustente a não ser uma vontade indomável de que a realidade obedecesse a esse ideal e não às leis que efectivamente a governam… Uma dessas ideias é o “viveram felizes para sempre”.

A culpa está disseminada: pelos poetas e pelos escritores (e seus devaneios românticos e odes à paixão), passando pelos argumentistas e realizadores (vejam-se as comédias românticas, um dos géneros cinematográficos mais perniciosos…), pelos contos de fadas e demais contos infantis, pelas escolas, pela TV, ou mesmo pelo sonho de quem está apaixonado e quer para sempre assim ficar, ou de quem não está mas deseja estar, enfim, a cultura ocidental está cravejada de uma mitologia romântica que nunca passou o teste da realidade. Esta é uma ideia, uma mentira ensinada às criancinhas (e também aos adultos), que se torna como que um mantra que, de tanto se repetir, acabaria por se concretizar…

E não se pense que isto é uma questão de somenos importância: a criação de falsas expectativas nas pessoas é um factor destrutivo de felicidade…

O problema é que nunca na história da humanidade se provou, se vivenciou, o “viveram felizes para sempre”. Pelo menos na interpretação que nos é transmitida em que “viveram felizes para sempre” significa “viveram felizes e apaixonados para sempre”…

Sei bem que as utopias, os sonhos, podem servir o propósito de pôr o mundo a avançar. Mas não neste caso. É que não podemos mudar a condição humana! Não podemos mudar, em particular, os mecanismos biológicos que regem as nossas paixões. Criar ilusões, fantasias, nunca cumpríveis, só propicia frustração, inquietação, infelicidade. Não só a paixão não é duradoura, nem sequer é um bom mecanismo de "matching" de longo prazo. A paixão é um mecanismo biológico que, na evolução humana, visou criar laços temporários entre um homem e uma mulher para que a procriação e os cuidados pós-natais fossem possíveis. A “química” faz com que nos apaixonemos por alguém que será um bom "matching" reprodutivo (já há estudos que o demonstram) e não por quem preenche os requisitos para que uma vivência a dois, sustentavelmente feliz, seja possível…

Contrariar o preconceito

Ninguém vive, nunca viveu, nem nunca viverá apaixonado para sempre pela mesma pessoa! Os neurologistas que estudam a paixão já demonstraram como a paixão se exaure ao fim de dois anos, até porque o corpo não mais aguentaria: a paixão é um estado alterado de consciência, um vulcão químico interior que nos torna viciados e obcecados pelo outro. E nem sequer amamos o outro senão uma idealização que dele fazemos… Os padrões neurais da paixão assemelham-se aos dos cocainómanos tal é o vício e a cegueira que de nós se apodera. Por isso, muitos psicólogos aconselham a que ninguém se case enquanto está apaixonado, uma vez que não conseguimos aí avaliar se o outro é, de facto, bom para nós…

Toda esta quimera da paixão misturou-se, na contemporaneidade, com a instituição casamento (ou vivência a dois), tendo-se passado a exigir dessa instituição algo para a qual ela nunca foi testada (e para a qual, objectivamente, não foi criada): a vivência perpétua, plena e feliz, dos cônjuges… O casamento é uma instituição que foi criada por motivos económicos para juntar interesses familiares e, mais tarde, para criar um espaço para a procriação em que o homem provia o sustento e a mulher o trabalho doméstico. Nesse tempo, a lei e a moral impediam o divórcio e ninguém exigia que esse fosse um espaço de felicidade. Sendo esta a história não deixa de ser surpreendente como, de repente, se passou a demandar do casamento tamanha façanha…

A realidade, porém, vem sempre ao de cima: a taxa de separações é hoje a maior de sempre, mostrando a dificuldade da conjugação da independência individual com o projecto conjugal feliz…

Por isso se torna fundamental contrariar o preconceito e ensinar as pessoas (e desde a infância) a conviverem com a realidade e a procurarem os paraísos possíveis. No final, há sempre lugar a escolhas, mas no espaço da realidade: podemos querer viver sempre em paixão, num pulular continuado de paixões em que o amor é “infinito enquanto dura”, mas em que vamos alterando sempre o nosso parceiro (qual Vinicius de Moraes, que se casou e descasou 9 vezes…); podemos também matarmo-nos (juntamente com a nossa amada) enquanto estamos apaixonados (quais Romeu e Julieta), cumprindo assim, efectivamente, o desígnio “viveram felizes para sempre”!; outra alternativa é construir uma relação a partir da amizade e evoluir para um amor sustentável; ou aprender a amar o outro, depois de morrer a paixão que nos ligava, e conviver com a lembrança dessa paixão; ou alicerçar o casamento num qualquer compromisso (religioso, familiar, económico, etc.) e manter essa empresa em bom funcionamento…

Enfim, nesta vida podemos querer ter tudo mas nunca vamos ter tudo. Se queremos ser felizes é bom estarmos preparados para o real e começar por não ensinar mentiras às criancinhas…

Sugerir correcção
Comentar