O bilhete para o espectáculo estava na carteira. O carteirista olhou para ele e fez um ar de espanto. “O que é esta treta?”, perguntou a si mesmo, enquanto procurava a resposta. Era um bilhete para o teatro. A peça mais esperada do ano. O Presidente da República ia estar presente, assim como um conhecido General. Até o Presidente da Junta de Freguesia fora convidado, embora tenha declinado o convite, por força de um monumental churrasco que o seu cunhado iria realizar.
Neste ponto, surgiram críticas. Muitos diziam que aquela era a peça do ano, talvez da década, e o Presidente da Junta deveria marcar presença. Mas quem o dizia, desconhecia os atributos irrecusáveis de um bom churrasco.
Mesmo com uma recusa tão notada, a peça causava expectativa. Era uma obra que reflectia, não só, sobre a Humanidade e a Pós-Modernidade, como também sobre as teias da política urdidas numa mercearia. Era uma peça do mundo, sobre o mundo, como muitos afirmavam.
O carteirista, porém, não sabia o que fazer com o bilhete. Queria vendê-lo, mas também se lembrou que nunca tinha ido ao teatro.
A decisão surgiu de forma tão inesperada que até se sentou, naquele momento de clarividência: iria ao teatro, pela primeira vez na vida. Pediu um fato emprestado. Procurou um livro, na biblioteca, com o qual pudesse aprender algo sobre teatro. Leu oito páginas e sentiu-se um iluminado. Estava pronto.
Antes de entrar no teatro, apercebeu-se da confusão que se tinha instalado. Estava muita gente, à porta do edifício, tanta que um cão que se encontrava deitado, ali perto, parecia confuso com a agitação tardia.
Quando o carteirista chegou ao átrio da sala de espectáculos, o ambiente parecia esmagá-lo: a alta sociedade estava naquela sala, com excepção do Presidente da Junta, que, naquele momento, degustava uma perna de frango bem assada. Mais do que pessoas bonitas, havia casacos e carteiras recheados de valores.
A Humanidade e a Pós-Modernidade tiveram que ficar para depois: as carteiras esperavam pela intervenção do carteirista. Este não faltou ao chamamento perfeito.
