Joana Manuel: “Mais grave do que roubarem-nos o futuro é roubarem-nos o presente”

Chamam-lhe jovem aos 36 anos. Mas a actriz e cantora não assume a etiqueta. O que não deixou os seus pais serem crianças não a deixa agora ser adulta. Precariedade, ausência de futuro. O discurso que fez há dias deixou muitos emocionados

A activista sempre trabalhou a recibos verdes ©Rodrigues
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A activista sempre trabalhou a recibos verdes ©Rodrigues
Joana Manuel trabalhou quase dez anos no Teatro Nacional de São João Teresa Queirós
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Joana Manuel trabalhou quase dez anos no Teatro Nacional de São João Teresa Queirós

Foi em 2002, quando Durão Barroso falou de um país de tanga, que trememos seriamente pela primeira vez. “Foi o primeiro grande alerta de que estávamos a entrar em marcha atrás.” Daí para a frente viveu-se a preparação para o que aguentamos agora, depois de um rigoroso “trabalho para a tensão social e para a repressão” feito pelos sucessivos governos. Quem o diz é a actriz e cantora Joana Manuel, que há dias proferiu um discurso sobre o mesmo país, uma década à frente e muitos direitos atrás, e pôs as redes sociais a falarem sobre ele.

“Há quem lhes chame o ‘arco do poder’, eu chamo-lhe uma ogiva de poder. Tudo isto tem estado a ser articulado entre os partidos do centro.” Tudo isto são os direitos perdidos, as pensões e os subsídios cortados, o desemprego galopante. É a precariedade e são os recibos verdes com que a activista de 36 anos convive diariamente desde que começou a trabalhar, há cerca de 15 anos.

Em 2011, Joana Manuel usou a herança do pai para pagar a dívida de 10 mil euros que tinha à Segurança Social. De seis em seis meses, como passou a ser obrigada a cobrar IVA, tem um “pesadelo financeiro” para resolver. Em 2012 declarou 10 mil euros e recebeu uma carta da Segurança Social a dizer que tinha passado para o terceiro escalão: passava a pagar 300 euros por mês.

De tempos a tempos, Joana Manuel pede ajuda à mãe, que recebe uma pensão maior pelos oito anos que trabalhou em França do que pelos mais de 50 que trabalhou em Portugal. Os pais do namorado também vão dando uma ajuda. Raramente vai ao teatro (a menos que tenha convites), concertos idem. “Estou constantemente a fazer contas.”

"Um deserto à frente”

A precariedade em que vive já não é uma questão sectorial, ainda que os profissionais da cultura o sofram de forma particular. A cada trabalho que termina Joana Manuel vê “um deserto à frente”: nunca sabe que trabalho vai ter e sequer se vai ter. Trabalhou quase uma década no Teatro Nacional de São João, no Coro da Gulbenkian, deu aulas na Escola Superior de Música de Lisboa e na Universidade de Évora.

É um verdadeiro recibo verde, mas é tudo menos uma trabalhadora independente. “A nossa actividade é intermitente e isso não é tido em conta no nosso regime”, lamenta. A actriz gostava de ver em Portugal um sistema semelhante ao francês, em que os intermitentes contam para os números do desemprego e nos períodos em que não trabalham têm direito a uma subvenção do estado.

A etiqueta de "jovem" que lhe colam é uma questão de precariedade, a mesma que impedia as crianças de serem crianças impede agora os adultos de serem adultos. "É uma espécie de espelho invertido. Não sei se basta passar através dele, como a Alice. Um dia vamos mesmo ter de parti-lo", disse Joana no discurso feito na Conferência Nacional em Defesa de um Portugal Soberano e Desenvolvido.

Quando lhe perguntam o que vê no futuro, tem a resposta na ponta da língua: “Não vejo nada. Mas mais grave do que roubarem-nos o futuro é roubarem-nos o presente.” Já pensou em desistir – da profissão e do país. Mas para já resiste, vive “um dia de cada vez”. E quer resistir e viver em Portugal, ainda que não saiba explicar bem por que razão. 

O que mais a preocupa é ver o país a andar em círculos: “Não é uma realidade nova, estamos a reviver uma realidade muito velha que nos está a cair de novo em cima.” Se podia ser pior? “Claro que sim. Houve um tempo em que havia escravos, trabalho infantil, em que a sociedade se ia desmoronando com o voto da mulher.” A “falácia monstruosa” de que não há outra solução é “pura ideologia”. “Querem convencer as pessoas de que é uma questão técnica. Mas estamos a falar de ideologia e das mortais.”

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