Cardi B: vai ser tudo dela

Álbum de estreia de novo cometa que tomou de assalto a cultura popular norte-americana no último ano.

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Jora Frantzis

Como todos os novos arquétipos de estrelas pop de alcance planetário, a música e a imagem de Cardi B têm criado, também elas, novos paradigmas de divisão de opiniões. A polaridade espraia-se das maneiras já expectáveis nas várias redes sociais em 2018, sendo que o assunto é uma milionária de 25, norte-americana de ascendência afro-latina: conservadores do hip-hop que acham que nada na sua música é original ou particularmente diferenciado do que vem de trás; conservadores tout court que são só ressacados no geral; gente que a acha superficial e acaba aí o raciocínio; feministas de micro-ondas woke; feministas inteligentes que percebem as várias tangentes de Cardi B; e todos os fãs, strictu senso, claro. É destes últimos o tipo de leitura mais interessante, essencialmente porque é cândida, e porque sacam o que há de mais relevante em Cardi B, a depuração atómica de todos os elementos que constituem a música, o discurso e a imagem da artista, provavelmente o produto pop mais bem conseguido da indústria musical americana numa série de anos. Invasion of Privacy é o seu primeiro álbum, depois de várias participações em faixas de outros artistas, e dos dois volumes em formato mixtape de Gangster Bitch Music.

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Cardi B: dos grandes bonecos e produtos pop da indústria norte-americana deste século, no século de Beyoncé, Rihanna e Nicki Minaj Jora Frantzis

A história dela dá umas voltas diferentes da narrativa normal. Começou a rimar na adolescência mas teve que se desligar da música para pagar as contas. Farta de não ter dinheiro para nada, decidiu virar stripper. Fala com orgulho das ligações sociais que fez com a indústria musical nesse meio, e com o mesmo auto-empoderamento financeiro que esse trabalho lhe deu e que lhe bancou os implantes. Vira celebridade do Instagram pelas fotos mas especialmente pelos vídeos, onde, com um sentido de humor e onomatopeias patenteados por ela, fala de todo o tipo de assunto, de fundo e da ordem do dia — pessoal parvo, pessoal desonesto, dinheiro, sexo, coisas caras que ela tem —, mas sempre ela, ela, ela (bem, é para isso que serve a coisa). Entre 2015 e 2017 estoura na televisão no reality show Love & Hip Hop: New York, onde se destaca dos outros participantes, e passa a abranger não só o público do smartphone mas o do sofá e da poltrona também. Vai conquistando milhões pela combinação de sinceridade e despudoramento atípicos na maior parte da cultura de massas no Ocidente. Em 2017 lança a sua primeira colaboração com Offset dos interplanetariamente populares Migos, Lick (remix), momento decisivo não só a nível pessoal (Offset é noivo de Cardi B, e pai da criança que aí vem, numa gravidez anunciada em directo no icónico Saturday Night Live) mas, dá a ideia, a nível artístico também. Lick é talvez a sua melhor canção até esse momento a nível de produção, e as estruturas e ligações do mundo Migos coincidem no tempo com o severo e súbito melhoramento da qualidade dos instrumentos das suas músicas. Tem o maravilhoso Bernie Sanders a elogiá-la no Twitter pela sua defesa da segurança social, e esta semana esteve a fazer sessões fotográficas com o noivo e com Sasha Obama, filha de Michelle e Barack.

A esta altura já terá dado para entender que Cardi B controla os vários canais mediáticos da babilónia, atingindo níveis pós-Kardashian de eficácia. Bodak Yellow foi o seu hit inescapável de 2017, e ao lado do outro single-vídeo, Bartier Cardi, está aqui em Invasion of Privacy. Com 48m14s de duração, é um exercício avançado em economia e pluralidade de formas de música comunitária e popular de várias proveniências, do caldeirão cultural dos EUA, fugindo dos recentes exercícios mais repetitivos do mainstream de “música urbana” (sic) ocidental mais ligado ao hip hop, derivação trap. Escolhas cirúrgicas de produção, minimalismo de formas, optimização maximal de alcance de públicos, qualidade de acabamentos sonoros tendo em conta os níveis intensos de compressão em jogo (escola Rihanna, que aqui é convidada para um ménage com Chrissy Teigen), vários vocabulários musicais, registos emocionais.

Navega super confiançuda a falar sobre a história de ascensão social da vida dela, a listar uma data de posses materiais (o normal — Lubotins, diamantes, Maybachs, etc), mas está particularmente inspirada, por um lado, a falar de todo o tipo proezas sexuais que faz e que lhe fazem (muito sexo oral por aqui) e, por outro, quando está mais despojada de protecções deixa transparecer outras dinâmicas do coração. Mas não há aqui um take vocal abaixo do bom, nem nenhuma faixa que não funcione ou cumpra o propósito.

Cardi B (nome real Belcalis Almanzar) lembra, recorda e actualiza (boa combinação) uma data de gente importante, mais e menos reconhecida na história da música popular que multiculturalmente roda nos bairros com menos guita dos States: a realeza da primeira vaga importante de rappers femininas com discurso sexualizado, gráfico e bem nasty, como Trina (sumidade no género), Foxy Brown ou Lil’Kim. Pega em Chickenhead, clássico cunilinguista do rapper de Memphis Project Pat com La Chat e os cruciais Three 6 Mafia, do qual utiliza um sample e a temática para o seu personalizado Bickenhead (ela põe B’s em tudo).

O hit Bodak Yellow, o seu grande cartão de visita ao mundo, pega em No Flockin do rapper Kodak Black e em Da Dip, de 1996, do habitante de New Orleans Freak Nasty.

Em Best Life, com Chance The Rapper (dos cantores mais unânimes a aparecer no mainstream em tempos recentes; os brancos adoram e tudo) traz à memória Juicy de Notorious B.I.G., na toada de perspectiva reflectiva do passado com olhos postos no futuro.

Desfilam outras e outros pop stars do mais recente e fresco que a indústria tem para oferecer, desde os supramencionados Migos, SZA, ou 21 Savage. Com YG faz o soberbo trap de She Bad, e vai buscar o porto-riquenho Bad Bunny e o colombiano J Balvin a samplar I Like It Like That (A Mi Me Gusta Asi) de Pete Rodriguez, para pegar nesse boogaloo icónico do crossover latino e fazer um boogaloo atrapalhado capaz de pôr a mexer qualquer criança de três anos ou animar um baile do INATEL, e quase tudo o mais que sobra no meio. Não é de resto a primeira vez que Cardi ataca o mercado latino, que também lhe pertence cultural e geneticamente, depois de ter participado no single La Modelo de Ozuna, e de ter expressado admiração por uma das raínhas do reggaeton, Queen Ivy. Para além de reggaeton, tem resquícios de dicção e métricas do dancehall jamaicano, onde também já teve coisas bonitas a dizer sobre Spice, das maiores figuras da declinação hiper-sexualizada do estilo de Kingston.

Quase tudo aqui podia ser single, se não o for é para não saturar o mercado. Ring com Kelhani, cruza baladas da escola de Aaliyah ou Ciara com melodias infecto-contagiosas tipo Ed Sheeran e se tiver um vídeo já lhe paga a reforma. Como dizem os americanos, é só bangers (malhas, malhões, malhetes, et al). No melhor sentido da coisa ela vai a todas, por assim dizer.

Poucos pormenores escapam aqui. Disse em entrevista, quando lhe perguntaram sobre a figuração da roupa que usa na capa do disco, que basicamente utilizou o que lhe puseram à frente, e não parece ter tido grande autoridade criativa aí. Provavelmente também está longe de ter assim tanta autoria em várias peças do álbum, mas na verdade Rihanna tem acampamentos onde dezenas de compositores e produtores lhe desenham canções que depois fazem milhões, e Michael Jackson também nunca teria feito meio Thriller sem Quincy Jones.

Talvez lhe falte algum rasgo e risco nos arranjos, mas talvez isso também não lhe interesse. Os anos vão deixar mais claro quem teve a visão e a mão neste disco que conta com mais de 20 compositores e compositoras, uma das quais Lauryn Hill (então é isto que ela anda a fazer). Seja como for, ouvindo-a aqui ou vendo um vídeo dela há um par de semanas à frente de uma multidão ensandecida e a perder de vista no festival Coachella, ladeada por um bando de dançarinas do futuro, é simples perceber que isto não só vai ser, como talvez já seja, tudo dela. Dos grandes bonecos e produtos pop da indústria norte-americana deste século, no século de Beyoncé, Rihanna e Nicki Minaj.

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