Saber toda a verdade há 30 anos evitaria mortes nos Comandos em 2016?

Inquérito às mortes de recrutas em 1988 esteve em segredo até agora e o PÚBLICO consultou-o. Como no curso de 2016, havia sinais “evidentes” de morte por desidratação e golpe de calor, mas a autópsia foi declarada inconclusiva.

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LUSA/MÁRIO CRUZ

No Campo Militar de Santa Margarida, onde decorria a instrução da Prova de Choque do curso 89 dos Comandos, mais de 100 instruendos foram assistidos entre as 15h e as 18h na enfermaria ali instalada no dia 14 de Abril de 1988.

Sofriam de esgotamento físico, psíquico, alterações de comportamento, sede, situações de traumatologia e desidratações. Entre eles, sete viriam a dar entrada no Hospital Distrital de Abrantes. Os soldados Joaquim Bastos e Luís Barata morreram nesse dia e as suas mortes, oficialmente atribuídas a causa “desconhecida” de acordo com os relatórios das autópsias, não foram esclarecidas às famílias

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O chefe da Polícia Judiciária Militar de Coimbra, como noticiado então, disse no processo que os dois jovens “foram vítimas da sua própria voluntariedade”

O curso começara na véspera, dia 13 de Abril, com 157 instruendos. A Polícia Judiciária Militar foi informada (seis dias depois das mortes) a 20 de Abril, através de um telefonema de um capitão do Destacamento de Comandos de Santa Margarida a comunicar a morte de dois soldados. Iniciou diligências no dia 21, uma semana depois das mortes.

Passados os trinta anos de segredo imposto no processo, mesmo depois de arquivado, o gabinete do chefe de Estado-Maior do Exército autorizou a sua consulta no Arquivo Geral do Exército. O PÚBLICO requereu a consulta no início de 2017, após as mortes de Hugo Abreu e Dylan da Silva no curso 127 dos Comandos em Setembro de 2016, em circunstâncias semelhantes.

Há militares, conhecendo os dois processos, que se questionam (sem quererem ser citados) se a culpa das mortes de 2016 nos Comandos “não foi de quem abafou as de 1988”, por não terem, na altura, sido apuradas responsabilidades e daí tiradas consequências.

Foram as verdadeiras causas das mortes abafadas para não responsabilizar oficiais militares? Podiam os doentes ter sido levados para o hospital, mais cedo? Os instruendos estavam há 40 horas no local da prova, uma zona árida e quente, e apenas tinham recebido dois cantis de água de 0.9 litros e duas rações de combate.

Autópsias inconclusivas

Os relatórios das autópsias concluem que as mortes tiveram causa desconhecida. Se concluíssem que estas se tinham devido a desidratação estariam a pôr em causa esses oficiais e instrutores? Um dos médicos peritos, José Ferreira de Simões Carvalho, não responde a essa pergunta mas diz ao PÚBLICO que a desidratação não foi identificada como causa da morte “por ter sido prontamente combatida com a perfusão intensiva de soros”. “Terá havido desidratação” mas foi tratada, concluíram na altura Simões de Carvalho e o seu colega João Pedro Pimenta Correia, no relatório da autópsia com data de 3 de Junho de 1988. Ambos eram médicos de clínica geral, contratados para fazer actividade pericial junto do tribunal.

“Como os tratamentos que fizeram no imediato incluíram a administração de soros, não eram evidentes sinais de desidratação como causa da morte”, refere ainda Simões de Carvalho. Entrevistado pelo PÚBLICO nesta semana, médico reitera o que escreveu há 30 anos: “Não consigo encontrar nada que possa acrescentar às conclusões tiradas no relatório da autópsia.”

Reconhece que “os exames complementares às vísceras” efectuados no Instituto de Medicina Legal (IML) atrasaram um pouco a entrega do relatório. Mas tudo “dentro do normal” apesar da “complexidade da situação”. Esses exames concluíram que ambos os instruendos eram saudáveis. Não existia qualquer malformação no coração, pulmões, fígado, rins, e outros órgãos.

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O chefe da Polícia Judiciária Militar de Coimbra, como noticiado então, disse no processo que os dois jovens “foram vítimas da sua própria voluntariedade”

Pelo contrário, para Duarte Nuno Vieira, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, que leu os relatórios das autópsias de Joaquim Bastos e Luís Barata, não existe qualquer dúvida: “A informação disponível, com toda a descrição médica, e conjugando os dados da autópsia com a informação clínica e circunstanciada, permite concluir que estas foram mortes por golpe de calor”. O professor catedrático, que foi presidente do Instituto Nacional de Medicina Legal entre 2000 e 2010, acrescenta: “Embora os médicos peritos tenham concluído que era morte por causa desconhecida, temos informação disponível para poder afirmar que estamos perante mortes por golpe de calor, em situações exactamente sobreponíveis àquelas que tivemos em 2016”, com as mortes de Hugo Abreu e Dylan da Silva.  

Mortes poderiam ter sido evitadas

Ao contrário do que aconteceu em 1988, a causa das mortes de 2016 foi identificada: desidratação e golpe de calor. Dezanove instrutores e responsáveis pelo curso foram acusados pelo Ministério Público de abuso de autoridade por ofensa à integridade física e serão julgados por decisão do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, que considerou que as mortes poderiam ter sido evitadas.

Alguns dos motivos invocados pela acusação foram o racionamento da água e a continuação da instrução quando vários recrutas já desfaleciam no dia 4 de Setembro de 2016, sob temperaturas acima dos 40 graus Celsius no Campo de Tiro de Alcochete. 

Há trinta anos, naquele dia excepcionalmente quente de Abril, as temperaturas não terão ultrapassado os 30 graus Celsius, como consta em declarações no processo. Mas a água distribuída era de apenas um cantil de 0,9 litros por dia, quando em 2016 seria de pelo menos três litros.

Às 15h do dia 14 de Abril de 1988, todos os que se mantinham na instrução iniciavam uma prova de técnica de combate; às 17h, a minoria que não tinha desfalecido até então, iniciava a Marcor (prova que alterna marcha e corrida, ao longo de dez quilómetros, mas que nesse dia terá sido reduzida para sete quilómetros e depois cinco – embora os depoimentos não sejam todos coincidentes). Entre eles, estavam Joaquim Bastos e Luís Barata.

Cerca de quatro horas depois do início dessa prova, Luís Barata deu entrada no hospital, sem vida. Iria fazer 21 anos em Novembro. Nesse mês foi ordenado pelo comandante da Região Militar do Centro, o general José Eugénio da Costa Estorninho, o arquivamento do inquérito aberto no Tribunal Judicial da Comarca de Abrantes e que tinha sido entregue para investigação à Polícia Judiciária Militar de Coimbra, para apuramento das circunstâncias das mortes. Joaquim Bastos foi levado em estado muito grave. Já sofrera paragens cardiorrespiratórias no posto de socorros e viria a falecer pouco depois de entrar no hospital.

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O chefe da Polícia Judiciária Militar de Coimbra, como noticiado então, disse no processo que os dois jovens “foram vítimas da sua própria voluntariedade”

Em nenhum momento durante as inquirições que estão no processo consultado pelo PÚBLICO, os motivos para essa excepcional afluência ao posto de socorros nesse dia – com 100 recrutas em três horas – são questionados ou explicados.

São apenas aflorados: no segundo dia da Marcor, as temperaturas aumentaram subitamente e os instruendos estavam cansados, não comiam para não terem sede, e não bebiam porque lhes era dito que apenas tinham um cantil de água por dia. Existia um ribeiro com poças de água naquele campo conhecido por ser extremamente árido, mas cuja utilização pelos instruendos era proibida.

A desidratação é recorrentemente referida nos depoimentos dos médicos que davam apoio aos treinos, mas não é apontada como a causa da morte no relatório da autópsia

Os três médicos – aspirantes a oficiais – de serviço para a assistência à prova ficaram na zona dos exercícios. Um foi chamado à enfermaria – mas só às 18h – onde eram tratados a soro e lhes e eram dados alimentos e líquidos. Quando foram inquiridos, todos disseram que “aqueles cuja integridade física era posta em causa” paravam a instrução. Um dos médicos lembra-se de ver trinta recrutas “muito cansados e com crises de histeria” durante a corrida. Desistir da corrida implicava a eliminação do curso.

O mesmo médico acrescenta que um dos doentes assistidos entrou em estado de choque, e depois em coma superficial. Um outro, que estava a fazer soro, entrou em paragem cardiorrespiratória. Os dois eram Luís Barata e Joaquim Bastos. O médico diz-se ainda convencido de que a morte de ambos os instruendos “foi originada por falta de líquidos”.

Voluntários à força

Igualmente inquirido, o comandante do Destacamento dos Comandos, tenente-coronel Ferreira da Silva, disse ter tido conhecimento de um grande afluxo de instruendos para o posto de socorros entre as 15h e 18h mas que só às 18h50 foi informado de uma situação grave e, logo depois, de outra. Foi então decidida a imediata retirada dos doentes para o Hospital de Abrantes, acrescentou aos investigadores da Polícia Judiciária Militar.

O helicóptero que estava de serviço ao curso encontrava-se indisponível e foi preciso recorrer à Base Aérea do Montijo que enviou outro helicóptero mas este demorou mais de uma hora a chegar. O comandante garantiu que aos instruendos não era exigida a execução de qualquer exercício físico quando não se sentiam bem, que era comum aparecerem vários instruendos com deficiências físicas graves só detectadas já durante o curso, e que “os acidentes” só poderiam ser minimizados com uma inspecção médica semelhante à das outras tropas especiais. Também defendeu que parte dos problemas se resolveria se todos os instruendos no curso de Comandos fossem voluntários. Não era o caso da maioria. O próprio comandante afirmou então que apenas 21% dos quadros e 63% dos praças se declaravam voluntários para os Comandos.

Os soldados Bastos e Barata tinham passado nos testes de aptidão física para as tropas especiais (a precisar de recrutas) e colocados, sem escolha, numa delas. No caso deles, foi o curso de Comandos. Não eram voluntários. 

Um dos nove instruendos ouvidos, um voluntário, conta que foi internado de urgência no dia a seguir às mortes dos colegas. “No dia 15 (sexta-feira), logo de manhã receberam instruções para recolherem ao quartel, em marcha apeada por grupos”, lê-se no depoimento que não é redigido na primeira pessoa. 

O quartel no Destacamento dos Comandos de Santa Margarida ficava a 14 quilómetros da zona onde estava a decorrer a Prova de Choque, suspensa, e onde os recrutas estavam a viver em tendas. “Saíram por volta das 11h30, e passado meia hora, sentiu-se mal, desfaleceu e caiu na marcha. Foi de ambulância  para o Hospital de Abrantes, onde foi tratado a soro, e regressou pelas 22h30 ao destacamento.” 

Duas semanas depois, ainda lhe custava segurar o corpo e a cabeça, com dores. Não tinha força nas pernas para andar e “quando lhe faziam perguntas tinha dificuldade em responder”, lê-se no seu depoimento. Disse ainda aos investigadores que “cada um fazia o melhor que podia para conquistar o emblema de comando” e que “os que não conseguem fazer os exercícios se sentem inferiores aos que fazem, até sentem vergonha e por isso todos fazem-no voluntariamente”.  

Mais tarde voltaram para o Regimento da Amadora, a instrução foi encurtada e o Campo Militar de Santa Margarida encerrado, por decisão do chefe do Estado-Maior do Exército, que também impôs que os cursos de Comandos passassem a receber apenas recrutas voluntários. 

Vómitos e quedas

Um comandante de instrução, inquirido, diz ter visto o instruendo Luís Barata com vómitos a cerca de 1,5 quilómetros do fim da prova, e a cair. Pensou que ele tivesse caído por ter tropeçado, por isso não parou e seguiu até ao fim do percurso. Continuou a marcha e não sabe quais os sintomas que ele apresentava  – “só os vómitos”.

A 400 metros do fim da marcha viu Joaquim Bastos caído, desmaiado, pálido. Também não parou. Soube mais tarde que tinham sido levados de jipe até ao acampamento e depois de helicóptero até ao hospital, onde Luís Barata entrou sem vida e Joaquim Bastos veio a falecer.

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