“Se não for a Berlenga, poucas coisas há para visitar cá na terra”

Quem mora em Peniche vê com bons olhos um museu nacional na cidade por onde passou uma parte importante da história da resistência à ditadura.

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Daniel Rocha (arquivo)

João António tem 73 anos, foi pescador e vive a cem metros da fortaleza. A antiga prisão cruzava-se com o seu quotidiano, tanto em terra, ali mesmo em frente, como quando partia para o mar e dele regressava – as muralhas e os blocos prisionais, os reclusos atrás das grades, era a última coisa que avistava ao sair da barra e a sua primeira imagem ao regressar ao porto de Peniche.

Agora passeia o cão em frente à fortaleza e sobre o futuro museu nacional que ali vai nascer só diz que concorda, “porque vai dar postos de trabalho”. Mas não está muito optimista quanto ao êxito do projecto. “Não sei se vai dar resultado. Se calhar era melhor uma esplanada e um restaurante e estava o assunto arrumado.”

A sair do restaurante onde trabalha está Fernando Afonso, 48 anos, que serviu há pouco os últimos clientes do almoço. São quatro da tarde e o sol despontou, depois de uma manhã com uma chuva miudinha e irritante. “Estou convencido que vai trazer muitas pessoas e isso vai ser bom para Peniche. Se não for a Berlenga, poucas coisas há para visitar cá na terra, e o museu, mesmo fraco, já atraía muita gente, por isso, se for assim uma coisa em grande acho que vai ser muito bom.”

A sua perspectiva não é só económica. “Isto foi um dos pontos da Revolução e deve ser lembrado”, diz o empregado de mesa, que conta ter tido inúmeros clientes que foram presos políticos ou seus familiares. “Tantos que vêm aqui almoçar e que me dizem que estiveram aqui presos e outros que contam que vieram cá de visita”, diz.

Joana Completo é operadora marítimo-turística e conhece a frustração dos seus clientes quando o mar não permite a visita às Berlengas. Nessas alturas a fortaleza, mesmo assim, modesta, é uma boa alternativa para os turistas visitarem. “Agora se for um grande museu nacional e com aquilo tudo ocupado, então vai ser uma boa iniciativa e será muito bom para Peniche”, diz.

O futuro daquele monumento não podia deixar de passar pela memória histórica. “O 25 de Abril passou por aqui e o 25 de Abril também aconteceu aqui, pelo menos foi o que me contaram, porque eu na altura não era nascida”, diz. Mas, como toda a gente em Peniche, também Joana já ouviu histórias e viu as imagens épicas da libertação dos presos políticos.

Beatriz Lopes, 21 anos, e Rita Raposo, 20 anos, são finalistas de Gestão de Restauração e Catering na Escola Superior de Turismo e Tecnologia do Mar. E reagem com surpresa ao anúncio do guia de conteúdos para o futuro museu. “Nós estivemos aqui no ano passado a servir o catering quando estiveram cá os ministros!” A ideia do museu agrada-lhes porque entendem que é importante para o turismo e para quebrar a sazonalidade de Peniche e entusiasma-as a componente de novas tecnologias aplicada aos espaços museológicos. Beatriz é de Leiria e Rita de Lisboa e confessam que não conheciam a história da prisão política. “Não sabíamos nada disto, só quando viemos para cá estudar é que nos contaram.”

À porta da fortaleza o guarda procura explicar aos estrangeiros que não se pode entrar porque o edifício está em obras. Foi o caso de Bernard Sancerni e Monique Ceresoli, que sem demonstrar grande pesar continuaram o seu passeio pelas muralhas. Afinal o dia está, finalmente, primaveril, o horizonte sem neblina e o mar, de um azul límpido, invulgarmente calmo. “É uma boa ideia fazer um museu sobre essa memória da prisão e sobre a liberdade”, diz Monique. Que acrescenta: “Salazar era um ditador!...”

E pode isso interessar aos estrangeiros ou só aos portugueses? “Claro que sim. Nós, em França, também temos os museus da resistência. Somos de Toulouse e também temos lá um”, responde Bernard. Monique completa: “Bom, é próprio de todos os países terem os seus museus da resistência. A luta pela liberdade é internacional!”

“Estou integralmente de acordo com o guião dos conteúdos e sobre os espaços que lhe estão destinados”, diz António José Correia, ex-presidente da Câmara de Peniche, que participou neste processo enquanto autarca. “E estou particularmente de acordo com dois aspectos: o memorial com os nomes dos presos políticos que por aqui passaram e a história da fortaleza, que remonta ao séc. XVI e que é omnipresente na vida de Peniche.”

O ex-presidente, eleito pela CDU durante três mandatos, elogia a comissão que concebeu os conteúdos do futuro museu nacional, sobretudo porque esta inclui “verdadeiros guardiães desta memória histórica que não pode ser desperdiçada”.

Mas deixa um recado para o ministro Pedro Marques: “Ele disse que o investimento era, para já, de 3,5 milhões de euros e eu acho que Peniche não pode esquecer esse ‘para já’.” E que é preciso pensar na gestão do museu e no aproveitamento do auditório e do muito espaço que a fortaleza tem para além da componente museológica. O actual presidente da Câmara de Peniche, Henrique Bertino, não quis prestar declarações.

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