Sete bailarinos no intestino de Ingmar Bergman

Antecipando o centenário do nascimento do cineasta sueco, Olga Roriz estreia esta sexta-feira, no Festival DDD — Dias da Dança, uma peça que se afunda nos abismos de uma obra dominadora sem se deixar dominar por ela.

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A Meio da Noite Sérgio Claro
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Olga Roriz Estelle Valente

Como milhares e milhares de outras pessoas que se deixaram atravessar pelo cinema de Ingmar Bergman (1918-2007) e nunca mais foram exactamente as mesmas, Olga Roriz lembra-se distintamente do momento em que, “com 20 e poucos anos”, viu pela primeira vez um filme do cineasta sueco cuja obra é até hoje presença dominadora no cânone ocidental. Entrou por uma porta difícil, “o Persona” (A Máscara, no título português), mas não saiu de lá a correr, pelo contrário: “Achei aquelas duas mulheres [Liv Ullmann e Bibi Andersson] lindas, fiquei hipnotizada pelo ambiente, houve logo muita coisa que mexeu em mim — mas não percebi nada do que vi”, conta ao PÚBLICO no final de um dos últimos ensaios de A Meio da Noite, a peça que esta sexta-feira chega ao Teatro Nacional São João, no Porto.

Primeira estreia absoluta do hiperactivo calendário (34 espectáculos, 64 apresentações) com que  até 13 de Maio o terceiro Festival DDD — Dias da Dança se estende do Porto a Gaia e Matosinhos, a nova criação da coreógrafa para a sua companhia põe sete bailarinos (Beatriz Dias, Catarina Câmara e Rita Calçada Bastos, a que se juntarão André de Campos, Bruno Alexandre, Bruno Alves e Francisco Rolo) à volta de uma mesa atulhada de papéis, candeeiros, livros e computadores portáteis. É um ponto de partida literal: assim começa A Meio da Noite, assim começou o processo de construir este espectáculo em cima de Ingmar Bergman, mas nem por isso bergmaniano. 

Ao contrário de Olga Roriz, que embora também não sendo uma bergmaniana (“No cinema o meu autor preferido é o Tarkovsky, mas o próprio Tarkovsky tem o Bergman como mestre”) se foi construindo como espectadora diante dos filmes do cineasta sueco, nem todo o elenco estava familiarizado com os termos da obra de que a coreógrafa queria alimentar-se nesta peça. Foi preciso sentarem-se juntos, com os computadores sincronizados, a ver os cinco filmes que constituíram uma espécie de filmografia prévia a A Meio da Noite — Paixão (1969), A Vergonha (1968), O Silêncio (1963), Lágrimas e Suspiros (1972) e A Hora do Lobo (1968) — para se garantir um primeiro patamar transversal de contágio e daí poderem partir juntos para as aulas de sueco e para as improvisações que levaram a peça para muito longe de Bergman, embora o seu fantasma paire por todo lado e às tantas a pequena ilha do Báltico onde viveu, filmou, morreu e foi enterrado, Fårö, se materialize no palco (pedrinhas e tudo).  

Na verdade, o processo que A Meio da Noite encerra começou muito antes, numa cabeça que com os anos foi processando e reprocessando os silêncios e os enigmas de Ingmar Bergman: “Quando vi o Fanny e Alexandre, já adulta, estava noutro estado. E percebi que afinal tudo ali é muito simples: são os nossos problemas de humanos. Mas para chegar lá era preciso tempo, e essa disponibilidade só a tive mais tarde.” Entretanto, com a aproximação do centenário do nascimento do cineasta sueco, que se comemora a 14 de Julho deste ano, Olga Roriz achou que era “o momento certo” para fazer a definitiva aproximação a essa ilha certamente inóspita e tortuosa, mas onde além de trauma, silêncio e ressentimento também há desejo, amor “e humor” (uma ilha onde em 2013 outro coreógrafo português, Paulo Ribeiro, se aventurou sozinho, no espectáculo Sem Um Tu Não Pode Haver Um Eu). 

Até chegar à sala de ensaios, A Meio da Noite também foi uma aventura solitária. “Vi 50 e tal filmes, sempre a tomar notas, sempre a puxar para trás e para a frente, e também li muito material. Mas a primeira coisa que fiz foi ir a Fårö, onde ele fez imensos filmes, incluindo o Persona, para perceber por que é que ele quis viver ali”, explica a coreógrafa. Foram só três dias, os suficientes para perceber que é “um lugar difícil”: “A costa é toda coberta de pedrinhas que fazem com que seja muito cansativo caminhar, muito cansativo mantermo-nos de pé. É por isso que nas fotografias de rodagem vemos a equipa toda com aquelas galochas enormes. Sente-se essa tensão permanentemente, é preciso fazer uma força danada para não cair.” Como também se sentem “as sombras da Liv Ullmann e da Bibi Andersson”, e se sente que Ingmar Bergman esteve, está e estará ali, e não apenas porque há uma campa com o nome dele — “cheia de folhas secas” que Olga Roriz diz ter sido “especial” limpar. “Ir até lá ligou-me certamente a ele e à obra dele de uma maneira que não teria sido possível se apenas tivesse visto os filmes e lido os livros. É aquela coisa de respirar o mesmo ar de que falamos quando estamos apaixonados.”

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Sérgio Claro

Amor-ódio

De regresso à mesa, três mulheres abrem e fecham livros, fixam os olhos nos seus portáteis, perguntam “o que é que vocês têm escrito para a cena três?”. O tiquetaque do relógio só pára quando se despem e se fixam no chão, deitadas de costas para a plateia, como se alguém tivesse carregado no botão de pausa para podermos ver melhor o que se esconde debaixo da mesa. Mas logo a discussão prossegue, até que os fantasmas de Bergman e dos seus actores voltam a apoderar-se daqueles três corpos, que depois serão sete, levando-os ao transe, e assim sucessivamente, num vaivém contínuo entre A Meio da Noite e o seu próprio making-of.

Além de homenagear Ingmar Bergman, Olga Roriz quis “homenagear o próprio processo criativo destes bailarinos”. Partes quase intactas desse processo ocupam agora o seu lugar no espectáculo, ao lado de citações directas dos filmes que os sete intérpretes viram na sala de ensaios e de outras private jokes que só os mais persistentes bergmanianos descodificarão. E documentam uma relação difícil, de genuíno amor-ódio, que a coreógrafa também não quis trair: “Logo no primeiro encontro, em que discutimos alguns aspectos vida dele, houve reacções negativas: ‘Oh não, isto faz-me lembrar a minha família’, ‘O meu pai também era assim’, por aí fora… Como é que eu ia fazer um espectáculo a partir do Bergman com bailarinos que não gostam do Bergman? Deixei que a renúncia acontecesse à medida que todos nos íamos instalando. E com o tempo eles acabaram por me entregar frases como estas que achei que deviam ficar: ‘Não há nada tão bonito como Liv Ullmann a olhar para Bergman, mas Bergman não é bonito’ ou ‘Não gosto de Ingmar, porque eu sou Ingmar.”

Depois dessas frases, desse corpo-a-corpo dos bailarinos com a figura totémica de Ingmar Bergman, com as suas obsessivas perversões e os seus ostensivos intestinos, A Meio da Noite afasta-se da mesa de trabalho e transforma-se noutra coisa: num lugar assombrado pelo seu cinema, e ao mesmo tempo libertado do seu cinema, onde tanto se vê Bergman em toda a parte como não se vê Bergman em parte nenhuma. “Ele está em todo o lado, como naqueles livros Onde Está o Wally?. Mas já se acumularam tantas camadas em cima, camadas mais oníricas, mais fantasiosas, que é difícil vê-lo nitidamente”, diz Olga Roriz. 

Seria mais fácil, admite, se tivesse conseguido pôr os sete bailarinos à mesa a falarem entre si em sueco, como no jantar de Natal de Fanny e Alexandre. Ficaram lá perto. 

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