Apaziguar o visceral com a literatura

A literatura pode produzir compreensão perante o próximo, mas isto não fica por aqui. Há uma outra questão

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Ralph Orlowski/Reuters

Quem lê poesia, sente. Há palavras aprumadas em poesia que conduzem-nos a sentimentos e emoções. A prosa é diferente porque não é só construída para o nervo, tem uma textura diferente. Quem escreve poesia diz-me que há poemas que acontecem; Pessoa também disse: "Aconteceu-me um poema". Isto parece implicar que há poemas que nascem de um mundo que não é consciente. Podemos dizer o mesmo dos sonhos: estes, simplesmente, acontecem. No campo onírico somos como certos animais: os gatos sonham, os cães sonham.

Se assim é, podemos supor que os leões sonham e os lobos também – os predadores sonham. Os sonhos e uma certa poesia revelam um mundo subterrâneo que emerge no consciente sem a solicitação deste. A linguagem serve como uma forma de comunicar, e, de certo modo, traduzir o que sentimos em palavras. O que está dentro nestes universos interiores pode ser inominável sem a tradução da linguagem. "Tradução", neste caso, não é só compreender, é, também, domar. Um poema que acontece pode ser um exemplo deste tipo de tradução.

Eu descobri, acompanhando George Steiner, que a literatura serve para sentir novos mundos. A literatura pode traduzir os dilemas de outros seres sensíveis, e deste modo, fermenta a empatia e a compreensão ante estes. Esta tese repete-se noutros autores: através da literatura alcançamos os outros. À primeira vista, não parece ser assim. Ler é um acto de isolamento, é um pacto com a solidão. Porém, esta é uma apreciação superficial. Ler pode servir para aproximar e comprometer. Cria uma ligação apreensível com o mundo, mais forte e intricada do que aquela sem livros. Eu já li que a "A cabana do Pai Tomás", de Harriet Beecher Stowe, fez mais pela abolição do esclavagismo nos Estados Unidos do que Abraham Lincoln, pois levou o tormento dos escravos negros a muitos lares livres, criando um momento imparável para a causa abolicionista.

A literatura pode produzir compreensão perante o próximo, mas isto não fica por aqui. Há uma outra questão. Quando ouço dizer que um poema acontece; quando alguém escreve algo que emergiu no seu consciente, e, isto funciona como uma tradução do que está no universo ininteligível do autor em palavras compreensíveis para nós, será que quando estas chegam aos nossos sentidos, não podemos usá-las como um instrumento para traduzir o que está no nosso universo subterrâneo próprio? A literatura não pode nos facultar meios para descodificar tudo aquilo que não pertence ao nosso consciente, mas que vive dentro de nós?

A questão pode ser relevante, porque antes da empatia perante os outros, não teremos de domesticar o visceral que ainda sobrevive nas profundezas dos nossos cérebros? O detrimento da literatura e a predominância de leituras pragmáticas e técnicas, não poderá remeter-nos para a frieza, a alienação e o diluir da empatia e afectividade? Será que o visceral pode ganhar força enquanto hiberna ou é suprimido por forças nos são estranhas? O que acontecerá se estas forças exteriores desentrançarem, e não temos a literatura para apaziguar o visceral?

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