A Vénus e o polícia Sandro

São muitas horas de treino, estamos preparados para tudo, ensaiamos várias situações e até encenamos as possibilidades mais perigosas. Mas desta não estava eu à espera

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De repente avançou para mim. Já tinha reparado nela, era bonita e eu não sou cego, apesar da extrema concentração a que me obrigo nestes momentos. São muitas horas de treino, estamos preparados para tudo, ensaiamos várias situações e até encenamos as possibilidades mais perigosas. Mas desta não estava eu à espera.

A miúda rondou-nos uns minutos antes e apercebi-me que estava curiosa, embora transmitisse uma calma que contrastava com a ebulição que ia fervendo. Enquanto os outros nos atiravam tomates e petardos, ela como que dançava em silêncio, avançando e recuando em passos pequenos e circulares. Impressionou-me sobretudo o seu olhar perscrutador (seriam verdes, os olhos?) e aquela espécie de interrogação que começava a incomodar-me. Foi então que me perguntou:

- porque não te juntas a nós?

Tratou-me por tu e por momentos passou-me pela cabeça a loucura de que a sua pele seria doce e aveludada.

- Porque não te juntas a nós?

E juro que fiquei petrificado, como se de repente me tivesse transformado numa estátua que tem a consciência de que é estátua e de que está aprisionado. Voltei a mim, pouco depois, e tentei lembrar-me de todos os ensinamentos dos treinos, mas não encontrei solução para aquilo. Sabia como marchar, como desarmar, como bater, como enquadrar e como prender. Mas aquilo não.

- Porque não te juntas a nós?

Seriam verdes aqueles olhos, eram ondulados os cabelos e uma pintura antiga surgiu-me na mente, reconhecia-a, outrora quis seguir pintura nas belas-artes, creio que é o Nascimento de Vénus, coincidência suprema, eu que me chamo Sandro como o pintor.

- Porque não te juntas a nós?

Ah, aquela pergunta a doer-me no coração, tenho dois filhos, conto o dinheiro. Era obrigatório que reagisse, mas só me apetecia abraçá-la e fugir para o meio da manifestação. Eu, um ciborgue, de corpo apertado em coletes sofisticados, viseiras de vidro ultra-resistente, num uniforme-prisão de ficção científica.

E eis que ela me abraça, por um instante deita a cabeça no meu ombro e sorri, pousa-me a mão no peito, parecia que estávamos a fazer amor, mas eu nada sinto, nada posso sentir, nada chegou ao tremor do meu sistema nervoso, estamos blindados naquelas vestes, só me restava fugir daquela aparição, fechar os olhos e tapar os ouvidos. Se não o fizesse, ela tomaria conta de mim e eu rebentaria a estátua e seria feliz a atirar tomates contra a sede do FMI e a percorrer as ruas da cidade, agarrado a ela, como se estivesse a nascer de novo, enquanto ela nascia em mim.

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