Um sonho mau

E quando esta ética do sacrifício terminar, dobrados e exaustos, teremos, ou não, um país sem dívida, mas sem gente. Sem esperança e com desespero

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Paulo Pimenta

O António nasceu há mais ou menos 27 anos. Pode ter 25 ou 30, ninguém sabe, mas também não importa, porque a vida dele tem para contar a mesma história da sua geração.

Houve músicas, com diferentes ritmos, melodias e letras sobre a sua vida, e ora se revolta ora se ri, cínico, de achar que alguém conta a sua história, mesmo sem o conhecer.

Trabalha a recibos verdes, e disse-lhe o senhor de fato com voz arrastada que esta semana falou na tv, que dos 600 euros que recebe - fruto da elevada consideração e estima que o seu patrão tem pela sua licenciatura, mestrado, pós-graduação e inscrição no Doutoramento (que interrompeu porque a bolsa nunca chegava a horas, quando chegava!), - feitas as contas dos descontos que tem de dar para a segurança social e IRS, sobram-lhe pouco mais de metade de um mês de trabalho, muito para além das 40 horas semanais. 

Em transportes, nunca gasta menos de 50 euros por mês, nos transportes públicos que querem privatizar. Dizem que dão prejuízo. Mas o velho carro dos pais “gasta muito”…. Ou talvez sejam os combustíveis que não param de subir. 

Parece que há concorrência e diz o senhor de fato e voz arrastada que os reguladores deviam prestar mais atenção à opinião pública. Deve ser falta de atenção. Ou do preço do crude ou dos mercados ou dos árabes. Deve ser qualquer coisa, mas não param de subir. Lá em casa, parece que além da subida da prestação da casa, que os pais compraram quando era mais barato comprar ao banco do que arrendar ao dono, soma-se o aumento da água (que dizem que também será privatizada) da luz e do gaz. A opção é não ter, porque opção também não há, que não seja aguentar e apertar o cinto… em breve às escuras, parece.

O ouro de outros tempos, que o pai ofereceu à mãe pelos 20 anos de casados, já está na loja de ouro que deve ser propriedade de senhores da Ásia, (os mesmos da EDP?) considerando o número de lojas que existem, o que faz lembrar uma antiga loja dos 300, mas que em vez de vender barato, compra barato – mundo engraçado este.

O António tem um grupo de dez amigos, dos que restam, que agora são praticamente só seis quando se juntam, porque dos dez, quatro estão desempregados. Quase 40%, portanto. 

A conversa tem sempre um capítulo reservado sobre os que eram de cá, mas que agora estão lá fora, ao que parece “bem”. “Qualquer dia também vamos e deixamos tudo pra trás, até lá vamos ver se isto melhora…”

Quando marcam um encontro, que não no Facebook, o António sempre se recorda que aquele trabalho é um privilégio, e que o direito ao trabalho deve ser uma piada qualquer, que nunca percebeu, pois ninguém sabe como exercer esse direito.

Parece que lá fora a crise é mais branda! As coisas custam o mesmo, mas ninguém recebe menos de 1000 euros, ou mais. Os amigos que foram de Erasmus já lhe tinham dito, e parece que é mesmo assim. Eles já foram, e qualquer dia vai ele também.

A namorada, a Maria, é advogada. Acabou com uma boa média. Está contente. Tem um lugar de trabalho onde faz estágio. À borla! Pena o que tem de pagar à Ordem; a inscrição, as aulas e os exames de acesso à profissão. Parece que a Universidade não chegava e até começar a ser “colega” do sócio do escritório, terá de pagar mais de 2000 euros. Mas sempre consegue ganhar “experiência” que não na SONAE, a maior empresa nacional e o maior empregador privado, que não obstante dos lucros anuais, continua a contratar nas condições conhecidas.

Parece que a coisa está má. E temos de fazer sacrifícios. O António e a Maria já não vão ao médico. É caro e isso é prós velhotes, que a malta nova não tem problemas de saúde.

Esta semana, o gasóleo subiu um cêntimo. Melhor que os três que subiu na semana passada. Nem tudo é mau. E a prestação do FIAT que os pais compraram em segunda mão em prestações está quase a acabar. Mesmo a tempo de fazer a revisão e pagar o seguro e o imposto de selo aos dez anos e os pneus e… levar à inspecção. 

Vamos lá ver se o cinto não tem mais um furo para cobrar qualquer coisa para quem tem carro… que mesmo que velho é um privilégio.

O pai do António está por casa. Reformou-se aos 56 anos porque a empresa faliu e aos 56 já não havia espaço para os da idade dele. E ao que parece também não há para os outros. Simplesmente não há. Ainda conseguiu reformar-se. Isto sem antes perder quase 50% da pensão, que na verdade era dinheiro dele. Foram quase 35 anos a trabalhar.

Agora voltou a apertar o cinto, ou a forca. Parece que o senhor de fato e voz arrastada que faz isto por Portugal diz que temos que fazer sacrifícios.

E quando esta ética do sacrifício terminar, dobrados e exaustos, teremos, ou não, um país sem dívida, mas sem gente. Sem esperança e com desespero. Com um pouco de nada, e com um futuro que dizem que não será melhor.

O António ainda cá está! Dizem tanta coisa, mas ele gosta disto. Não se sabe português, e não sabe muito sobre o que é ser de cá, mas gosta disto! Gosta muito! É o que lhe resta. Ele e os seus, para que amanhã tudo isto tenha sido, como dizem os Ornatos, “um sonho mau”.

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