“Balada de Hill Street”: defeitos especiais

A "Balada de Hill Street" não precisava de grandes truques, orçamentos gigantescos e argumentos rocambolescos

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Os 1980 têm-nos sido apresentados nos últimos anos como que enlatados com prazo de validade rasurado. Seja em crónicas matinais ou "playlists" importadas nas rádios de grande audiência ou nos canais temáticos nacionais. Ao vivo (se assim pudermos chamar os músicos que nos têm visitado nos últimos anos) numas coisas “tipo” festivais e também em “sets” de DJ, seja em casamentos, seja em espaços de renome... Em todos eles, a década é apresentada como uma anedota de liceu maquilhada de Robert Smith, que já teve a sua graça, mas que o tempo tornou mais balofa do que esse pobre desgraçado; carros que falam, nadadoras salvadoras que não molham o cabelo, heróis de canivete e cruzeiros que não afundam.

Nesses anos, e na nossa televisão, houve coisas maravilhosas: "Cheers, Aquele Bar", "Quem sai aos Seus", "Modelo e Detective" ou o "Verão Azul". Séries que nos prendiam à televisão, mesmo arriscando uma má nota no teste do dia seguinte ou perdendo uma tarde de praia.

Lá fora tiveram, entre muitas, "Taxi", uma série que nos deu gente como Danny DeVito, Rhea Perlman ou... Andy Kaufman. Criada por James L. Brooks, Stan Daniels, David Davis e Ed. Weinberger, os quatro responsáveis pela MTM Enterprises (criada, em 1969, por Mary Tyler Moore por causa do seu "show"). Uma produtora independente responsável durante três décadas por excelentes momentos de televisão. De todos eles, aquele a cujo logótipo todos nós a associamos será "Balada de Hill Street" ("Hill Street Blues").

Criada por Michael Kozoll e por Steven Bochco, a série, que estreia a 15 de Janeiro de 1981, representou um momento de ruptura no fazer televisão. A técnica documental de filmagem, conseguida pelo uso das famosas câmaras portáteis ArriFlex, favorecia um argumento onde a vida profissional e privada dos muitos personagens se cruzava. Um ruído de fundo permanente e as dezenas de figurantes sempre em movimento reforçavam o caos, de tal modo estranho, que a temporada de estreia foi um fracasso (mesmo assim foi a primeira série a ter contratada para uma segunda época). De 81 a 87 ganhou 98 Emmys...

A série foi um momento marcante em toda uma geração, não só em Portugal. Muito antes de todas as outras (à excepção, por cá, talvez do "Verão Azul"), "Hill Street Blues" apresentou-nos, em horário nobre, questões fundamentais como o racismo institucional, a infidelidade, as dependências, o divórcio, a homossexualidade ou a violência da vida urbana. Um dos segredos é o facto de a cidade onde pertence Hill Street não ser uma única vez referida — esse nível de “anonimato” geográfico permitiu uma maior aproximação aos personagens e a um enredo que a todos trata por igual (pelo menos nos Estados Unidos).

Sim! Emociono-me sempre que a vejo, grato pelos momentos que me oferece: a morte do Joe Coffey, a sexualidade da Grace, a inteligência do Sgt. Phil, o “cowboy” Renko, Howard Hunter — o “fascista” trapalhão, o rato do Belker, a maravilhosa Joyce. Encantam-me Sidney "The Snitch" ou o extraordinário Jeffrey Tambor. Quando me perguntam quais as personalidades que mais me influenciaram na minha vida refiro sempre, sem hesitar, o capitão Frank Furillo. A sua ética e a lealdade nunca interferiram no seu juízo e na sua capacidade de liderar, mesmo que as regras não fossem as normais (veja-se o relacionamento com a sua ex-mulher): havia no seu exemplo algo de sobrenatural, qualidade que mais estranha se torna nos tempos que vivemos.

Em todos os episódios a comédia e o drama envolvem-se. Ainda a lágrima não secou e já temos o sorriso de volta. É com o coração cheio que agora a vejo. É presente. A ela podemos regressar sempre que quisermos e as suas qualidades permanecem intactas, incorruptíveis.

Cada vez mais me parece que a excitação dos 80, mais do que um tique, é um truque de uma geração em Portugal. Apelando à lembrança de uns tempos felizes, gerem os gostos, transportando os leitores, ouvintes e espectadores para uma certa zona de conforto, mesmo não correspondendo à sua verdadeira memória. Um truque que falseia aquilo que deveria ser pessoal porque relacionado com o nosso crescimento, não só como indivíduos, mas também como comunidade.

A "Balada de Hill Street" não precisava de grandes truques, orçamentos gigantescos e argumentos rocambolescos. Nada parecia aparado: é uma série cheia de defeitos, só que estes são especiais e é isso que a torna nossa.

A minha série preferida de sempre passa todos os dias no Fox Crime.

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