“As Férias do Sr. Hulot” (“Les Vacances de M. Hulot”), de Jacques Tati (1953)

Entre os quadros de humor que ele constrói para nos divertir, há oportunidade para sonhar os sonhos dos nostálgicos, aqueles que encontram em coisas velhas e tristes parcelas de identidade do que um dia foram

Poster de “As Férias do Sr. Hulot”
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A propósito de férias de Verão, convido hoje a espreitar um mundo que existiu e que se prolongou por algumas décadas e que podemos ter conhecido se por esta altura somos pais de filhos universitários ou com idade para o serem. Se, por outro lado, somos nós os actuais filhos universitários, então poderemos ter umas memórias difusas desse mundo desaparecido através de relatos dos nossos pais ou dos nossos tios, ou de fotografias antigas que andam lá por casa, a preto e branco, pequeninas, a enrolar-se, como se documentassem expedições arqueológicas. Para nós, portugueses, seria aquele mundo longínquo e incompreensível do “antes do 25 de Abril”, em que havia muitos homens magros em fatos minúsculos de mau corte e senhoras de vestidos feitos nas modistas e penteados progressivamente escultóricos, que, como não podiam ir ainda ao estrangeiro, ficavam por cá a passear em dois teatros de operações – a praia e as termas – do mesmo “país das pensões”.

Sendo a França mais rica do que Portugal há uns bons anos, há-de haver diferenças entre as férias do Sr. Hulot e as férias do Sr. Silva, mas sentimo-nos amplamente representados nesse retrato geral construído por Jacques Tati em “As Férias do Sr. Hulot”. De tal modo que, entre os quadros de humor que ele constrói para nos divertir, há oportunidade para sonhar os sonhos dos nostálgicos, aqueles que encontram em coisas velhas e tristes parcelas de identidade do que um dia foram, mas também sabores e sensações que então eram novos e excitantes e agora estão esgotados.

Tal como vimos em “O Meu Tio”, o cinema de Jacques Tati não é facilmente catalogável ou apresentável naqueles resumozinhos dos programas de alguns cinemas ou nas contracapas dos DVD, formato que nos permite conhecer alguns filmes que não sejam “comédias românticas” (mesmo que este o seja). Podemos falar em Buster Keaton, em Charlie Chaplin, para realçar uma forma de fazer filmes pouco dependentes da palavra e muito de uma observação aguda da realidade e de uma transmissão dos elementos mais ridículos, desconcertantes ou mesmo absurdos que aí existem. Mas também a delicadeza e a ternura de uma carícia na cabeça de um cão que dormia no meio da estrada, obrigando os carros a travagens bruscas para não o atropelar, ou seguir uma criança pequenina, pequenina, que vai comprar sorvetes sozinha e regressa à pensão com um em cada mão, mas com a dificuldade de ter de abrir uma porta fechada com um puxador difícil.

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É este misto de poder de observação e de predomínio romântico que nos conquista, sendo muito relevante para o prolongamento das memórias a música original de Alain Romans, cujas frases repetidas em saxofone, em viola eléctrica, em piano, em suave vibrafone, nos fazem meditar tão intensamente no que temos em comum com aquele espaço e aquele tempo. E tudo fica mais belo: as regueifinhas no cabelo da jovem loura que rouba as atenções (uma espécie de precursora da Princesa Leia de “A Guerra das Estrelas”), os eternos passeios do casal idoso, ela à frente, ele atrás, com a máquina fotográfica a tiracolo (que não serve para nada), o serviço às mesas da sala de jantar por parte do patrão e do empregado, ambos mal-encarados, o conjunto de personagens pitorescas na sala de estar da pensão, com a sua paz ameaçada a todo o momento por uma perturbação inventada pelo Sr. Hulot (como em “Tintin no Tibete”, em que Tintin, tendo adormecido a jogar xadrez com o Capitão Hadock, assusta os restantes hóspedes do Hotel des Sommets com um grito aflitivo saído de um pesadelo).

Outros momentos inesquecíveis: o som irritante da mola da porta de vaivém da sala de jantar da pensão, o trabalhar delicioso do motor da carripana do Sr. Hulot, a expressão de traquinice do miúdo que aparece com a cabeça enfiada num dos quartos do volante do autocarro de turistas prestes a partir. Boas férias!

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