Herodíades, onde a sexualidade e o catolicismo se encontram

Em cena até hoje, dia 21 de Julho, Herodíades fala de morte, de ateísmo como salvação, da mulher e de sexualidade

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O espectáculo Herodíades de Giovanni Testori em cena no Teatro da Politécnica com encenação de Jorge Silva Melo, termina já hoje, dia 21 de Julho.

A encenação de Herodíades está inequivocamente interligada com o texto e a tradução deste. Não é apenas o que se diz mas como se diz, a escolha das palavras perfeitas que sintetizam significados poderosos, dispostos em versos muitíssimo bem trabalhados na cena pelo actor. O jogo de metáforas e antíteses, a recorrência ao hipérbato e o anúncio da chegada de um Messias com uma mensagem monoteísta (por oposição ao antropocentrismo) são características impressas no espectáculo e visíveis na gesticulação amaneirada de Herodíades.

A beleza lúgubre que caracteriza o espectáculo desde o primeiro momento, é-nos trazida pela percepção imediata de uma tristeza que está como que enraizada em Herodíades. Elmano Sancho é um homem, um actor a despir-se de si em meio a uma metamorfose. Nunca chegando a ser apenas homem ou apenas mulher, é neste binómio que a encenação potencia a lasciva que impregna a personagem. A antítese, que domina este ser, é-nos mostrada através dos antagonismos do interior da personagem como, por exemplo, a religiosidade e a heresia.

A morte está presente desde o início do espectáculo, quer seja em evocações ou na própria cena. O vermelho transporta-nos ao jogo de poderes entre o sacro e o político tanto quanto entre o corpo e o espírito. O espaço cénico não deixa de ser metamórfico no sentido em que também é uma extensão da personagem, ela veste-se dele confundindo-se a nudez do actor com a da cena. A metamorfose acontece de uma forma tão inocentemente perversa que é reveladora de que as mãos de Herodíades já estavam sujas de sangue mesmo antes de São João Baptista morrer. Por outro lado, a fragilidade – fruto da rejeição – em que se encontra Herodíades, legitima perante o público, que peça a cabeça do profeta.

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São João Baptista, o apóstolo virgem e amado por Jesus Cristo, traz consigo uma dimensão gay no sentido da devoção e dedicação a outro homem. Esta dimensão gay está presente na encenação pela curiosidade e prazer com que contemplamos a personagem andrógina que, por oposição a São João Baptista, é extremamente libidinosa. O relato da incapacidade de São João Baptista ter relações sexuais – ou sequer erecção – com Herodíades é a antítese da voluptuosidade dela. A misoginia latente na ideologia cristã é desmascarada sem que haja qualquer regozijo pela aclamada virtude da castidade.

O ateísmo surge como solução única para quem já não poderá encontrar a salvação, pelo simples facto de ter sentido desejo sexual. Mas o espectáculo é também sobre a condição da mulher, sobre aquilo que é normalmente calado, o que não é dito. É um homem em cena que diz aquilo que é dito por uma mulher, porque a mulher não pode dizê-lo, nem senti-lo, nem fazê-lo segundo os rígidos códigos sociais. O facto de ser um homem em palco a interpretar uma personagem feminina e a cabeça de São João Baptista não ser mostrada e apenas evocada – o corte que não se vê mas que dói –, aludem também à ideia de castração. Texto e encenação propõem o encontro dramático entre sexualidade e doutrina católica, remetendo-nos à condição indissolúvel de pecadores sendo, por isso, uma metáfora que pretende o inconformismo do público face à efemeridade da vida.

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