Sangue e castigo

Nas entranhas do pensamento preguiçoso, o preconceito é sempre o melhor guia e o estereótipo dominante aprisiona o homossexual na crisálida (imperativo biológico) da promiscuidade

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Fernando Veludo/NFACTOS

Os brandos costumes são o cancro da vida política e social portuguesa. A este respeito, Eduardo Lourenço escreveu um livro notável: "O Fascismo Nunca Existiu", para dar conta do sentimento, tão lusitano, de confirmação e aceitação da ordem vigente. Na verdade, tirando algumas minorias activas, a sociedade portuguesa reprime o inconformismo, acomoda-se, evita o conflito, reproduz.

O salazarismo, alicerçado no respeitinho quotidiano pelas instituições matriciais (Deus, Pátria, Família), foi organicamente absorvido e aceite pela maioria silenciosa que nele se revia. O regime acabou com um golpe militar que só posteriormente se transformou em revolução pela pressão popular de muitos que, antes, não ousavam sequer pensar na existência do “fascismo”…

Vem isto a propósito da recusa de uma dádiva de sangue de um homossexual. Instaurando literalmente uma hierarquia de sangue entre puros e impuros, como outrora existia metaforicamente o “sangue azul” da nobreza, os serviços e seus zelosos funcionários atestam a ordem natural das coisas.

Note-se que o indivíduo em causa tinha o mesmo parceiro há mais de um ano e utilizava preservativo, ou seja, não incorria em comportamentos de risco, questão hoje tida como crucial para o "mainstream# científico. Se mentisse, se fingisse ser heterossexual, a sua dádiva seria aceite.

Mas para o senso comum oficial persiste o estigma das “categorias de risco”. Nas entranhas do pensamento preguiçoso, o preconceito é sempre o melhor guia e o estereótipo dominante aprisiona o homossexual na crisálida (imperativo biológico) da promiscuidade. Perigoso é o homem que dissocia reprodução e sexualidade, pois dele é o reino do prazer sem função social e natural.

Mentir é permitido e encorajado. Ser verdadeiro consigo mesmo e com os outros é punido. Os brandos costumes alimentam-se deste véu de aparências e hipocrisia. Mas por detrás da brandura descobre-se quase sempre a violência, a intolerância, a catalogação das pessoas em gavetas, o seu controle e repressão.

Os brandos costumes são a antecâmara do medo e da passividade que este gera. É sempre mais difícil, convenhamos, desafiar a estupidez, questionar o consenso dos silêncios torpes, o ruído que se esconde na melodia, o contratempo que se insinua no tempo, virar as coisas do avesso ou pensar de outro modo.

A brandura dos costumes é a verdadeira pieguice do ser-se português.

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