Duas ou três coisas que eu sei sobre o Brasil

Para ser-se negro no Brasil às vezes basta ser-se pobre, ainda que branco. Os estudos confirmam que um branco pobre que viva rodeado de negros tende a autoclassificar-se como negro

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Sérgio Moraes/Reuters

Quando entramos num elevador no Rio de Janeiro somos de alguma forma surpreendidos com uma placa que nos diz que é expressamente proibido discriminar o seu uso em função da raça, género, origem ou condição social, doença que não seja socialmente contagiosa, etc.

A surpresa é de certa maneira dupla: existe uma prática corrente de discriminação social na utilização de elevadores e a “raça” é a primeira variável dessa exclusão. Amigos da Universidade disseram-me, então, perante a minha surpresa, que ainda há bem pouco tempo os negros eram malquistos no elevador “social” (porque existe uma hierarquia que o valoriza face ao de “serviço”). Realidade, enfim, que em tudo contradiz o mito da “democracia racial” com que o Brasil se apresenta ao mundo e no qual Portugal tentou tardiamente construir a legitimidade do seu império colonial, contando com a preciosa ajuda, durante a ditadura, do prestigiado académico brasileiro Gilberto Freyre, através da disseminação simplificada da sua defesa do “lusotropicalismo”.

Para ser-se negro às vezes basta ser-se pobre, ainda que branco. Os estudos confirmam que um branco pobre que viva rodeado de negros tende a autoclassificar-se como negro. Percebi então muito melhor a letra de “Haiti”, escrita por Caetano Veloso:

"Quando você for convidado pra subir no adro


?Da fundação casa de Jorge Amado


?Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos


?Dando porrada na nuca de malandros pretos


?De ladrões mulatos e outros quase brancos


?Tratados como pretos


?Só pra mostrar aos outros quase pretos


?(E são quase todos pretos)


?E aos quase brancos pobres como pretos


?Como é que pretos, pobres e mulatos


?E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados"

Se em Portugal o capital escolar é o grande revelador das desigualdades sociais, no Brasil a raça é a matriz mais aparente. Por isso, o país adoptou uma política de quotas para negros na administração pública e nas universidades.

Mesmo a sociedade de praia, suposta metáfora do nivelamento popular carioca (cidade onde a geografia e a ocupação ao território “concederam” aos pobres o “privilégio” de morarem ao lado dos ricos e de possuírem a mais bela vista do mundo — sim, lembrei-me das torres do portuense bairro do Aleixo), existem sectores bem delimitados onde estão os sectores mais prestigiados e brancos da classe média, ou os gays, ou certas “turmas” assentes em estilos de vida ou gostos musicais. Copacabana, por exemplo, a coqueluche da elite carioca no século XX, é hoje depreciada pela burguesia em favor de Ipanema, Leblon ou Barra da Tijuca. Eis o exemplo acabado do multiculturalismo conservador: diferenças efervescentes, mas que não se tocam, segregadas em enclaves de areia.

Mas para mostrar como as dinâmicas sociais são complexas, conheci Eulália, uma negra “bem carregada de tinta”, estudante da universidade federal fluminense que veio falar-me, no final de uma conferência, de como gostava de José Saramago e do Memorial do Convento. Eulália é filha de uma negra casada com um branco. A mãe, que via nessa união uma forma de mobilidade social, nutria por ela forte sentimento de rejeição. Afinal Eulália nascera negra — cor de pele que lhe lembrava a irremediável condição da miséria.

Eulália, estudante universitária com cerca de sessenta anos, contribui para um Brasil melhor através da alfabetização de adultos em sua casa. Disse-me num sorriso: “Tenho uma aluna com 82 anos que aprendeu a ler e a escrever e que não falta a uma aula porque diz que já não tem tempo a perder. Depois disso decidi-me a vir para aqui, para a Universidade!”.

Estas são duas ou três coisas que eu sei sobre o Brasil, país que amo.

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