Oportunidade, disse ele

Ide e levai a boa nova deste reino onde a flexibilidade é a lei, uma corda que nunca rompe, que estica sempre e até sempre. Ide e levai o dízimo

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Nuno Ferreira Santos

Que o desemprego é uma oportunidade, disse ele, talvez pensando no mercado de trabalho como um ambiente líquido, onde se navega na fluidez absoluta, ou saltando de nenúfar em nenúfar, abrindo janelas a cada novo emprego.

Que alegria, imaginais melhor sorte do que ter tempo para as promoções ou os descontos ou os saldos ou a feira ou a orgia ou a dinâmica de grupo ou lá o que é aquilo do Pingo Doce, podeis agora saltar, pular, esfaquear, comer as migalhas da casa grande e esquecer a luta de classes; que oportunidade para sairdes da caverna e receberdes a luz do liberalismo, o mundo é vosso, o futuro é vosso, há "low-costs" como dantes havia as auto-estradas para quando abandonardes este país, aliviando a panela de pressão. Ide e levai a boa nova deste reino onde a flexibilidade é a lei, uma corda que nunca rompe, que estica sempre e até sempre. Ide e levai o dízimo.

Que o desemprego é uma oportunidade, disse ele, mas pensava nos empresários, que assim podem baixar salários e exportar mais, qualquer dia a China e a Índia pedem-nos a receita, como é bom explorar em Portugal.

Que não ter dinheiro para os tratamentos ou o transporte ao hospital é uma oportunidade, para desintoxicar, abrir horizontes, amar a ecologia, des-medicalizar, combater o bio-poder e viver das ervinhas medicinais.

Que deixar o curso por não ter dinheiro para as propinas é uma oportunidade, pode o rapazola procurar emprego e se não há emprego há oportunidade e se não há oportunidade talvez haja oportunismo.

Que a pobreza é uma oportunidade, para ser-se honesto, humilde, servil e os pobrezinhos, já se sabe, vivem no coração das damas caridosas.

Que mexer, reformar, reestruturar, relançar, desmontar, inventariar é uma oportunidade para ferir a rotina de morte, não há nada como a instabilidade, a adrenalina de não saber o amanhã, o imprevisto é "sexy" e mobilizador, agora todos somos radicais, extremistas da economia, revolucionários da mais-valia, ai este erotismo de mercado, salivo com a oferta e a procura como bestas sádicas à solta, que frenesim, que excitação.

Que morrer é uma oportunidade: o défice melhora, as agências funerárias facturam, os padres oram e os campos agradecem.

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