Kim e Moon juntam-se na cimeira em que tudo vai correr bem

Há mais de dez anos que os líderes das Coreias não se encontravam pessoalmente. A cimeira desta sexta-feira surge na sombra do encontro entre Kim e Trump. A grande dúvida é se os acordos alcançados agora entre os dois líderes têm sustentação futura.

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Imagens do encontro desta sexta-feira Reuters/REUTERS TV
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A bandeira da Coreia unificada na abertura do Jogos de Inverno, a 9 de Fevereiro CHRISTIAN BRUNA/EPA

Tem havido silêncio na fronteira entre as duas Coreias. E isso pode significar paz – mas não para já. Esta semana, a Coreia do Sul decidiu desligar os megafones que ao longo da fronteira emitem diariamente propaganda contra o regime de Pyongyang, incluindo denúncias contra Kim Jong-un, notícias sobre a qualidade de vida a Sul do paralelo 38.º, ou até mesmo K-Pop (o popular género musical criado na Coreia do Sul). O som, que chegava aos soldados estacionados perto da fronteira e a várias aldeias, já não se ouve, por causa de mais uma das decisões que desde o início do ano têm reaproximado as duas nações. Os seus líderes sentam-se esta sexta-feira frente-a-frente para tentar saber até onde podem ir neste namoro.

Vive-se um autêntico ambiente de lua-de-mel na Península Coreana, impensável há pouco de mais de meio ano, quando cada teste balístico norte-coreano colocava a região mais perto do conflito. Uma guerra neste contexto seria desastrosa, com potencial elevado para, pela segunda vez na História, se recorrer a armas nucleares e para arrastar duas das maiores potências mundiais (EUA e China) para o campo de batalha.

O argumento é, portanto, bastante forte para que tudo corra bem esta sexta-feira entre o líder norte-coreano, Kim Jong-un, e o Presidente sul-coreano, Moon Jae-in, na aldeia de Panmunjeom na zona desmilitarizada. “Houve muito trabalho feito previamente para assegurar que a cimeira será bem-sucedida”, diz ao PÚBLICO a vice-directora do Instituto EUA-Coreia da Escola de Estudos Internacionais Avançados Johns Hopkins, Jenny Town.

Os símbolos também fazem parte deste trabalho prévio. Nos últimos dias, começaram a ver-se nas varandas das casas de muitas cidades sul-coreanas bandeiras da Coreia unificada – uma silhueta do mapa da península sobre um fundo branco – para expressar o desejo de que a cimeira seja um sucesso.

Há mais de dez anos que os líderes dos dois países não se encontravam pessoalmente – o que, por si só, daria à cimeira desta sexta-feira uma importância elevada. Mas o seu estatuto sai reforçado com a perspectiva do primeiro encontro entre um líder norte-coreano e um Presidente norte-americano em funções, que deverá acontecer nas próximas semanas.

Há muitos temas em cima da mesa nas negociações entre Kim e Moon, mas o alcance dos acordos a que ambos chegarem está dependente do que vier a acontecer quando Donald Trump se sentar com Kim. “De certeza que irá haver discussões sobre alguma iniciativa inter-coreana, mas acho que os sul-coreanos percebem que mesmo na agenda inter-coreana há muitas limitações caso os EUA não concordem”, diz Jenny Town. A analista duvida que “alguém saia descontente desta cimeira”. Os dois líderes “sabem o que esperar deste processo, e o que realisticamente podem obter ou não”.

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Condições únicas

O grande tema da cimeira é a chamada desnuclearização da Península Coreana, omnipresente em praticamente todas as declarações diplomáticas. Trata-se de um processo que não é novo e que acompanha desde o início o desenvolvimento do programa nuclear norte-coreano. As negociações foram feitas de avanços e recuos, seguidas de trocas de acusações sobre os culpados dos falhanços. Em Washington é usual dizer-se que o regime norte-coreano utiliza a diplomacia para ganhar tempo sem fazer concessões reais, enquanto Pyongyang acusa os EUA de terem um só objectivo – o derrube da dinastia Kim.

Agora, as negociações acontecem numa altura muito particular, em que, pela primeira vez, se verificam várias condições raramente reunidas. Depois de anos em que o desenvolvimento nuclear norte-coreano queimou etapas, com vários testes balísticos e de bombas bem-sucedidos, o regime está a dar, finalmente, sinais de que está disposto a negociar o seu desarmamento.

No último fim-de-semana, Kim anunciou a suspensão dos testes balísticos e nucleares – algo que já acontecia na prática desde Novembro – e o início de uma nova fase na sua governação, em que o desenvolvimento económico será a prioridade. Segundo o líder norte-coreano, o programa nuclear atingiu o patamar necessário para dissuadir os seus adversários de qualquer ataque. Town considera que esta foi uma “decisão muito estratégica” por parte do regime, e que teve em conta a cimeira com Trump. “Não deixou de ser uma concessão diplomática, mas Kim apresentou-a de uma forma que, internamente, o mostra numa posição de poder”, diz a analista.

Por outro lado, a sucessão de rondas de sanções económicas aprovadas pelo Conselho de Segurança da ONU no ano passado pode estar já a ter algum impacto nos cálculos da liderança norte-coreana. São poucos os dados fiáveis sobre a economia do país, que não publica indicadores estatísticos, mas há vários sinais que mostram as consequências de algumas medidas. Reportagens do New York Times e do Wall Street Journal perto da fronteira com a China dão conta da reduzida actividade nos últimos meses. O Governo chinês diz que as suas importações de produtos norte-coreanos caíram um terço ao longo do ano passado e que as exportações de produtos petrolíferos para a Coreia do Norte atingiram mínimos históricos.

Apesar destes sinais, é improvável que as sanções, por si só, sejam suficientes para que o regime abdique das armas que lhe garantem a manutenção. “Se acham que os norte-coreanos vão revoltar-se ou que o regime irá colapsar por causa das sanções, então não percebem os norte-coreanos”, disse ao New York Times Kang Mi-jin, um dissidente norte-coreano que recolhe dados económicos para o Banco Central da Coreia do Sul. “Isto são pessoas que sobreviveram à fome comendo sementes e falam disso com orgulho”, acrescentou.

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Um dos objectivos de Kim nas negociações irá continuar a ser a remoção das sanções ou, pelo menos, daquelas que impeçam o desenvolvimento de projectos de cooperação económica com a Coreia do Sul, à semelhança do que já aconteceu noutras iniciativas diplomáticas.

Escrever a paz

Em Panmunjeom, conhecida como “aldeia da paz”, também será impossível escapar à guerra. Mais de seis décadas depois, as duas Coreias continuam tecnicamente em guerra, algo que continua a dificultar o seu entendimento. Em 1953, foi assinado apenas um armistício para pôr fim aos combates, e a Coreia do Sul nem sequer foi parte desse acordo. Também aqui será necessário esperar pela cimeira entre Kim e Trump. Jenny Town diz que é possível que as duas Coreias assinem uma “declaração de paz”, que no entanto não será legalmente vinculativa, apesar do elevado simbolismo.

Uma possibilidade seria um acordo entre os dois líderes para o recuo dos seus contingentes militares que actualmente ocupam parte da chamada “zona desmilitarizada” – a faixa de quatro quilómetros de largura que separa as duas Coreias e que foi estabelecida no acordo de armistício. “Não faz sentido que as duas Coreias apoiem os esforços para acabar a guerra quando ambas não respeitam o armistício”, disse ao Korea Times o professor do Instituto do Extremo Oriente da Universidade de Kyungnam, Kim Dong-yup.

O realismo dos dois líderes deverá permitir que o clima de boa vizinhança observado nos últimos meses se mantenha e poderá até lançar novas bases para o futuro. “A dúvida”, diz Jenny Town, “é se aquilo que sair da cimeira poderá ser realmente posto em prática”.

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