Curtas de longa duração

Sprays de sangue e olhos a tremelicar de morte, colchões pop encantados pelas Pega Monstro, raparigas à água, actores hetero em porno gay... Um pequeno mostruário do que se anuncia no cinema português, conversas com alguns protagonistas da competição de curtas metragens do Indie.

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Gonçalo Robalo, com os olhos “a tremelicar”, achou “que ia quinar”. Enquanto esperava pelo fim, no hospital, pensou em todos os que tinham morrido, na tia, no avô, na avó, no pai, no cão... todos com os olhos a tremelicar... (as pessoas, quando adoeciam, iam lá para casa, iam lá para casa os cancros no intestino, os AVC, etc.). Gonçalo não quinou, foi-lhe diagnosticado vertigem posicional paroxística benigna. Mas foi no hospital que se lembrou do primeiro momento de prazer consciente, em criança, quando a avó lhe contou a história dos olhos a tremelicar de uma morta no caixão — de cada vez que pedia à avó para lhe repetir a história, o conto vinha acrescentado de um ponto.

Eis então agora Gonçalo a contar histórias de sprays de sangue devido a um atropelamento, de esguichos de merda de uma colostomia, do teatro de um cão no seu passamento, de murmúrios e dos olhares “sem rumo” — os olhos, o último movimento dos corpos — e da sua própria baba a estatelar-se no chão naquele dia em que ia quinar.

Não, a baba não é real, mas os mortos de Os Mortos morreram —entre amigos, Gonçalo é conhecido por contar histórias de família. São episódios verídicos? Quando os conta são reais. É isso que conta em Os Mortos, o romance fotográfico de um homem marcado por uma imagem de infância. O filme é assim: sucessão de fotografias, o olhar do morto directo ao espectador, uma voz que se posiciona num estado alterado a coreografar os acontecimentos, fazendo “Photoshop ao texto e não às imagens”.

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Os Mortos, dia 28/4 às 21h45 no Cinema São Jorge e dia 2/5 às 21h30 no Cinema São Jorge

Devíamos ter escrito o romance fotográfico de “um homem marcado por uma imagem de infância”, assim, entre aspas, porque era o que aparecia no início de La Jetée (1962), de Chris Marker, filme que Gonçalo, 42 anos, arquitecto, não se cansa de nunca desvendar os segredos. La Jetée era a história de um tipo que ia atrás da sua própria morte. Os Mortos talvez seja a história dos malabarismos de um tipo para estar ao lado da morte sem ser invadido por ela.

“As pessoas, quando adoeciam, iam lá para casa. Por exemplo, comecei a tratar da minha avó, limpava-a. Um puto que é beto deixa de ser beto quando limpa um rabo. Passa a ter outra consciência do outro, começa a pensar no ser falível. Estes mortos estavam já um pouco escritos, eu sempre falei muito deles aos amigos.”

E desfia as estratégias de gravação do texto, nas madrugadas, o microfone em posição para “captar o nada” — e como depois a gravação, a “cena traumática”, fica em repouso, sem ele se aproximar, até um vazio no quotidiano ou uma fragilidade qualquer o levarem ao encontro de si próprio, da sua psicoterapia.

O espectador — é uma experiência que aqui se partilha... — fechará os olhos para eles mais fortemente ficarem impressionados pela pulp fiction do texto, sentirá o frémito de uma ficção que pode não ter fim (durar hora e meia ou cinco horas: Os Mortos não desfaz possibilidades, investe nelas), intimidar-se-á com a voz do contador de histórias, uma entidade que resvala para a persona, mais um pouco e podia até não existir. O espectador fica refém destas dúvidas, não sabe, por exemplo, quem está a manipular o seu prazer, mas quando conhece o verdadeiro Gonçalo pode, afinal, serenar.

Começámos estas conversas com os protagonistas da competição de curtas portuguesas do IndieLisboa — sinalizando a variedade e imprevisibilidade que irrompe neste cinema que se anuncia — por um dos percursos mais atípicos. É o filme de um arquitecto de 42 anos, sem passagem pela Escola de Cinema e de concretização cinematográfica irregular.

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Amor, Avenidas Novas , dia 29/4 às 18h30 no São Jorge, dia 1/5 às 19h45 na Culturgest, dia 3/5 às 10h30 e às 21h30 no São Jorge e dia 4/5 às 21h45 na Culturgest

Agora é a vez de um dos exemplares novíssimos, saído do Conservatório. É a vez do filme de escola que depois do Indie estará em Cannes na Semana da Crítica, Amor, Avenidas Novas, de Duarte Coimbra. Reparem: a sua turma produziu outra curta para outro dos grandes festivais, o de Berlim (Onde o Verão Vai, de David Pinheiro Vicente). A turma implicou-se no filme de Duarte e no filme de David. Miguel Valverde, programador da selecção, comenta, mais do que esses finalistas de 2016/2017, esta abertura do Conservatório ao mundo, estes “filmes de escola” que deixaram de ser encarados como meros “exercícios”.

“Houve um período em que os alunos filmavam em película, estavam limitados, não podiam fazer exercícios grandes. Hoje, nenhum deles depara com esses limites, filmam com as suas câmaras digitais, já podem contar a história que queriam contar, em 20 ou 30 minutos. A escola está aberta a aceitar o que eles querem fazer, a escola abriu-se para fora, os filmes circulam em festivais.” E os programadores começam a ver-se aflitos para enquadrar a desordem — era mais fácil quando cavaleiros solitários, Oliveira, primeiro, depois Pedro Costa, depois Miguel Gomes... davam tempo para serem digeridas as descobertas.

Por falar nisso: Amor, Avenidas Novas é uma magnífica exibição de egocentrismo e melancolia como não se via desde as curtas de Gomes — o desejo de se expor, cantar e dançar, patente em cada plano e dessa forma se esconder. Duarte diz que sim: Gomes encantou-o durante o curso de cinema. “Foi a pessoa mais importante. Nos filmes dele há sempre um gesto de homenagear o cinema e de o desconstruir. Sempre foi essa a preocupação em Amor, Avenidas Novas: utilizar o que o cinema me pode dar para as minhas ideias serem claras.”

Temos um colchão de casal de um adolescente sem companheira, sentimos o turbilhão da Almirante Reis e do Martim Moniz, ouvimos uma canção das Pega Monstro e outra de Lena d’Água, e o tal adolescente está atarantado no seu pré-apocalipse: os turistas roubam-lhe a cidade, o amor é menos ideal do que o dos pais nos anos 1980... e temos o cinema como inscrição de afectos de um grupo. É assim que Duarte sente: “Interessa-me o cinema como arquivo de lugares e de expressões, pessoas e músicas. A Almirante Reis, por exemplo, é o sítio onde a maior parte dos meus amigos vive. Queria fazer este filme com as pessoas que têm uma ligação às imagens que estão a ser filmadas.”

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A Barriga de Mariana, dia 27/4 às 19h00 no Cinema São Jorge e dia 1/5 às 21h30 no Cinema São Jorge

O silêncio da natureza

Às tantas, neste percurso, uma rapariga cai à água. À superfície, um incidente sem consequências de maior. Mas algo começou a morrer ali quando ela caiu (porque ele tem andado distraído: ela está grávida e ele sempre a dormir quando ela lhe quer anunciar que vai ser pai). Isto é já outro filme, é a sequência de um lago, paisagem de majestosos silêncios que torna pequenas duas figuras na gaivota. A natureza não quer saber do que ali se passa, não quer saber dos problemas daquele rapaz e daquela rapariga.

O lago e um prenúncio de morte: dizemos a Frederico Mesquita que é inevitável a lembrança de um filme, aparentemente tão distante de A Barriga de Mariana: Leave her to Heaven, de John M. Stahl, em que o desequilíbrio de Gene Tierney chamava a morte a um lago. Frederico viu-o “há muitos anos”, talvez quando a frequência da Cinemateca lhe dava argumentos para atravessar o curso de pintura e lhe forneceu a bagagem para ingressar depois no Conservatório. A Barriga de Mariana revele as tensões, negociações e frustrações de um casal em sotto voce. Nada que ver com a intensidade do melodrama de Stahl. Mas nunca gritando, tem dentro um grito. Foi curioso ouvir de Frederico que o filme nasceu dessa cena do lago, e de uma estranha projecção que fez da sua culpa. Escutem: “Estava a fazer férias com a minha namorada, estávamos no meio do lago, ela teve um ataque de pânico, eu não percebi que era a sério, não a ajudei. Quando percebi e a ajudei, ocorreu-me que se ela estivesse grávida eu teria feito a figura do pior namorado, teria sido catastrófico.” Não foi “a gravidez” que lhe interessou, foram as cobardias e embirrações das “pessoas normais”, foi o autocentramento das personagens. O silêncio de A Barriga de Mariana tem qualquer coisa de teste mortífero.

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Self Destructive Boys, dia 27/4 à 19h00 no Cinema São Jorge e dia 1/5 às 21h30 no Cinema São Jorge

As florestas frondosas em que se forjam laços inquebrantáveis têm sido o habitat de André Santos e Marco Leão. Seis curtas em dez anos — A Nossa Necessidade de Consolo (2008), Cavalos Selvagens (2010), Infinito (2011), Má Raça (2013), Aula de Condução (2015), Pedro (2016) — compõem uma singular aventura. Formam um só filme, como um mesmo filme que vem desgastando as suas utopias. Self Destructive Boys é um gesto de auto-ironia. Como se fossem eles, André e Marco, os “rapazes autodestrutivos”. Rebentam a sua bolha, infiltram diálogos no seu cinema, algo em que sempre foram parcos, explicitam o sexo, algo em que foram reservados, e escolhem um tom “light”, como disseram, para “falar da masculinidade, da elasticidade sexual, mas uma coisa irónica, não tão densa nem tão pesada” como os filmes anteriores. Em Self Destructive Boys dois realizadores contratam três rapazes hetero para um porno gay — na floresta. “Estamos aqui para filmar pilas e rabos.” Talvez seja uma autofiguração paródica, eles que expuseram a sua conjugalidade em Cavalos Selvagens... a verdade é que a câmara e o desejo de dois realizadores lambem os corpos dos actores.

O horizonte deceptivo não anda longe, o sexo é pantomima, o prazer elidido — a floresta assiste às mutações no cinema de André e Marco, 33 anos.

Não conseguir estabilizar a “história” de Histórias de Fantasmas, de Carlos Pereira — o cineasta testemunha: cada festival vê uma sinopse diferente —, pode ser uma forma luminosa de percorrer as sombras que oferece. Há na dúvida um mundo de possibilidades. Se dissermos que na origem estão conversas com o pintor Pierre Maurcot sobre a dificuldade em alcançar o humano, fica-se com a ideia de que se trata de um “filme de artista”, de um filme sobre esse trabalho — “realista”, então — de Maurcot sobre a ruína, a melancolia, a memória, sobre as dificuldades. Também (não) é.

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Histórias de Fantasmas, dia 27/4 às 19h00 no Cinema São Jorge e dia 1/5 às 21h30 no Cinema São Jorge

Carlos desvenda: há filmes que podem ser como cidades e este talvez tenha que ver também com Berlim, onde vive e onde conversou com Maurcot, e onde, ao falarem de pintura, talvez tenham falado de uma cidade “de becos, de sombras, de fantasmas”. O espectador não sabe disso, mas o que é bonito é que Histórias de Fantasmas se desenrola como se também não soubesse. Progride às apalpadelas, como quem toca para se deixar tocar (eis outra sinopse...), habita sem angústias as sombras. É um filme de serena coabitação com a incerteza — uma coabitação sensorial com o jogo de escondidas. Definitivamente, é sobre o cinema.

Esta competição de 16 títulos mostra-se dividida em dois blocos, um narrativo, outro “experimental” — as propostas foram chegando, revela Valverde, e abriram desafios que os programadores não podiam recusar; o primeiro título a ser seleccionado foi Num País Estrangeiro, de Miguel Seabra Lopes e Karen Akerman, e isso, por exemplo, instalou um apetite na selecção pela abstracção e era preciso saciá-lo. História de Fantasmas faz figura então de consciência do transporte que se desenha por aqui. Carlos, 28 anos, que acabou o Conservatório em 2010 e programa em Estocolmo e em Berlim, diz-se “de uma tradição de cinema mais clássico, de ficção”, mas “com interesse nas Belas Artes”. Interessa-lhe o “lado abstracto” sem cair no abstracto. “Não me interessa o papel do realizador como alguém que tem todas as respostas e que as vai codificando. Andamos a tentar alcançar o humano. Na maior parte das vezes falhamos. Queria fazer um filme sobre isso.”

Ele é realizador e programador. Quer “manter” as duas actividades. Lançamos-lhe que Histórias de Fantasmas pode ser uma reacção ao ruído de imagens e sons com que se depara na sua actividade. Responde que sim, é a “necessidade da espera, o assumir das dúvidas, o querer fazer filmes sem medo do medo”. Agora, então, silêncio.

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