A sala de cinema

A ida ao cinema deste pai e filha funciona como uma pequena e momentânea ilusão de tranquilidade, de "normalidade", que, não obstante, não passará apenas disso mesmo

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Um dos momentos mais frios no neo-realismo de "O Conto do Vigário" (1955), de Fellini, prende-se com a cena em que Augusto é interpelado por um homem a quem burlou e de quem estava fugido há já muito tempo. É que esse momento, que culminará com Augusto, preso, a ser arrastado pela polícia diante da inocência incrédula de Patrizia, a sua pequena filha, ocorre num local muito particular: numa sala de cinema. Não é na rua, num café, em casa ou noutro sítio qualquer; é numa sala de cinema, na qual Augusto se preparava para ver um filme com a sua filha numa tarde bem passada entre pai e filha (que, até então, haviam estado separados).


O lugar que é a sala de cinema consubstancia, justamente, a tal frieza, ou, de outra perspectiva, o pragmatismo de que falo no início. Num tom profundamente pessimista, sem concessões do tipo "tudo está bem quando acaba bem", Fellini não poupa no realismo e no "trágico" da vida: nem no cinema, lugar de escapismo e transgressão, ou, mais genericamente, na Arte, enquanto meio de evasão do real em direcção ao Belo, a uma existência superior, os homens podem encontrar a felicidade, ainda que por breves instantes.

A ida ao cinema deste pai e filha funciona como uma pequena e momentânea ilusão de tranquilidade, de "normalidade" (irremediavelmente desfeita, no entanto, dada a separação entre pai e mãe), que, não obstante, não passará apenas disso mesmo, já que esse momento pacificador será abruptamente cortado, trucidado, pela dureza da vida real, ao mesmíssimo tempo que a pequena Patrizia saboreia descontraidamente – "infantilmente", diria, como sugestão de uma infância esmagada pelo mundo dos adultos – um gelado.

Augusto é avistado e confrontado por uma das suas vítimas (a única, note-se, que não aparece no filme como sendo pobre), sendo depois levado pela polícia. Nem num local, portanto, de "imaginação", como é o cinema – onde nós, espectadores ("segundos" espectadores, no sentido em que Augusto e Patrizia eram também, naquele momento, espectadores), podíamos imaginar (acreditar) num desfecho feliz para aquela relação –, o sonho leva a melhor. Pelo contrário, o "real" – o "fatum" – subsiste.

Acresce, ainda, uma estrutura dramática e narrativa tripartida (muito cara ao realismo poético francês dos anos 30), a qual potencia a curva, primeiramente ascendente, e depois descendente, de optimismo neste filme. No pico do optimismo, ilumina-se uma esperança: é, precisamente, quando Augusto decide retomar a sua relação com a filha, passando o dia com ela e oferecendo-lhe um bonito relógio (como se o "tempo" entre os dois começasse a contar a partir daquele momento). É então que, nesse mesmo dia – e inicia-se a trajectória descendente –, essa vaga de esperança, de felicidade, se desvanece, e a realidade, trágica e agreste, assume novamente o seu curso inexorável: na cena da sala de cinema, Augusto é preso e separa-se, uma vez mais, da filha. E quando sai da prisão, então aí sim, a desgraça abate-se impiedosamente, numa cena dolorosa e difícil de digerir.

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