O estranho caso de Winnipeg

Nessa “cidade nevada e sonâmbula” está realmente sediada uma das maiores comunidades de artistas da América

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Na primeira conversa que tivemos e com uma adorável pronúncia francesa à Jean Seberg, ela disse-me ser de Winnipeg, justamente do centro da América do Norte. Falou-me do isolamento da cidade e da paisagem gelada e industrializada: sabes, temos neve durante sete meses do ano e Minneapolis como cidade mais próxima, a cerca de oito horas de carro; mas temos mais, temos milhares, milhares de artistas a viver em Winnipeg. Winnipeg?

Uns dias mais tarde, por um estranho acaso, encontrei em destaque na secção de arte da noctívaga livraria La Hune, em Saint-Germain, uma obra dedicada à cena artística da cidade canadiana de Winnipeg. Winnipeg, novamente, e ela não estava a mentir.

Guiada por uma semântica despretensiosa e esotérica, quase sempre de confronto e de subversão, a prolífica produção artística de Winnipeg tem ecoado além-Canadá. Apercebi-me disso não só pela canadiana Kate, não só pela publicação da La Hune, mas quando, dois dias mais tarde, decidi visitar a exposição temporária da la maison rouge e dei de caras com uma exposição colectiva de artistas de Winnipeg.

Nessa “cidade nevada e sonâmbula” – como lhe chamou o documentarista Guy Maddin no seu interessante filme "My Winnipeg" – está realmente sediada uma das maiores comunidades de artistas da América, cuja produção peculiar ganhou popularidade e visibilidade a nível internacional, durante os últimos anos.

Winnipeg, onde os espíritos habitam

O grande interesse da arte produzida em Winnipeg consiste, principalmente, no curioso distanciamento face às práticas contemporâneas no campo das artes visuais, numa obsessão pela representação de elementos do território onde a cidade foi fundada (no ano de 1873) e pelos mitos e ritos dos diferentes povos (autóctones e não autóctones) que o habitaram, ao longo dos últimos séculos.

Numa era de globalização de ideias e de processos de criação, os artistas de Winnipeg parecem estar focados num diálogo determinado e sombrio com as memórias colectivas e a identidade intemporal da província de Manitoba (à qual pertence Winnipeg e que na língua dos nativos cree significa “onde os espíritos habitam”). Taxidermia, crenças oriundas de diferentes diásporas, espiritismo e outras referências ao paranormal, são temáticas comuns, exploradas através dos mais diversos mediums.

Na insólita arte “proto-surrealista” de Winnipeg (como lhe chamou Sigrid Dahle, a comissária da referida exposição), encontramos a beleza de arquétipos obscuros que nos deixam uma estranha vontade de partir num retiro à Bruce Chatwin para desvendar as suas excentricidades e curiosidades, algures disponíveis entre fábricas, centros comerciais, ringues de hóquei no gelo, novos equipamentos culturais e muita, muita neve.

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