Fotografias da cidade interdita

Paulo Pimenta bateu delicadamente à porta, pediu para entrar, trocou palavras, permutou afectos, ganhou a confiança daquelas famílias

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Paulo Pimenta

As fotografias sobre os pobres não têm de ser fotografias pobres. E se o afirmo é porque durante muito tempo se acreditou (e acredita ainda, embora dissimuladamente…) que a cultura dos pobres é uma cultura pobre (ou então neutralizada numa aura essencializada, folclorizada, objecto morto de museu poeirento).

O que nos dizem as fotografias de Paulo Pimenta sobre famílias que viviam (algumas ainda vivem) em condições de habitabilidade sub-humana na freguesia de Campanhã, no Porto, é que existem cidades proibidas dentro da grande cidade; urbes silenciadas de entes fantasmagóricos, que sobrevivem entre nossas senhoras de Fátima em barro, paredes massacradas por fissuras onde corre a água, tectos de uma fragilidade incomensurável e que, todavia, prosseguem, seguem em frente, têm uma vida, sonhos e (des)esperanças.

O que nos mostram ainda tais fotografias é que Paulo Pimenta, pela mão do assistente social José Pinto (o carismático e solidário “Chalana”), bateu delicadamente à porta, pediu para entrar, trocou palavras, permutou afectos, ganhou a confiança daquelas famílias e desvendou, então, os anódinos segredos dos seus modos precários de habitar.

Paulo Pimenta entrou na cidade proibida, no território residual que as banais classes médias desconhecem por medo, por sentimento de insegurança, por racismo social ou por contaminação mediática de pânico social e moral. Ao fazê-lo, derrubou, conscientemente ou não, as débeis barreiras que separam o fotojornalismo da fotografia de autor (transmutada pelo “milagre da assinatura) e da fotografia social.

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Paulo Pimenta entrou na cidade proibida Paulo Pimenta

Sim, aquelas casas e seus habitantes têm um valor notícia e um valor denúncia, através das fotografias; sim, aquelas películas fogem do panfletário e da mera lógica figurativa para desbravar terrenos estéticos do simbolismo, do surrealismo ou até, quase, da abstracção; sim, aqueles retratos ampliam o nosso conhecimento sobre a realidade social dos miseráveis.

A sensibilidade de Paulo Pimenta revela-se em três facetas substanciais: por um lado, não mostra nenhum rosto, preservando a imagem das pessoas e escapando a uma possível deriva para o espectáculo e a representação de uma fachada para a objectiva. Em contrapartida, numa espécie de contrapeso à sua delicadeza, expõe a cru as feridas da pobreza. Finalmente, presta uma subtil atenção aos objectos aparentemente corriqueiros: os ícones de louça; a roupa que alguém há-de vestir; os quadros nas paredes em ruínas.

O fotógrafo percebeu que os objectos desvendam as pessoas e que as pessoas se revelam através desses seus prolongamentos, as suas “coisas”, os seus (parcos) mas simbólicos haveres. Que ninguém diga, a partir de agora, que não conhece aquele casario de Campanhã onde as pessoas vivem assim, tão pobremente. Que ninguém renuncie, depois, a fazer as perguntas difíceis.

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