As curvas do crime em tempos de crise

"O risco agora é que os responsáveis pela ordem, encorajados pela troika que nos vigia, alargada a tolerância pelo medo, pretendam tirar proveito do alarmismo"

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Pedro Cunha

A comunicação social tem sido um veículo expressivo das preocupações colectivas, entre elas a preocupação com o crime. Nada de novo, se a crise actual não configurasse uma ameaça adicional, precisamente a explosão da criminalidade. As autoridades admitem o aumento dos roubos que, na categoria do esticão, se terão agravado em 25%. O pânico moral desenha-se no horizonte e diz da associação entre crime e pobreza. Subentende-se que o cidadão comum, não conseguindo pagar o infantário do filho ou a renda de casa, contabilizadas as oportunidades e os riscos, irá esticar uma carteira para a via pública. Sem mais. O crime seria assim uma estratégia de sobrevivência que, curiosamente, estaria limitada aos mais desprotegidos e não teria aplicação à ambição generalizada – de todos – de enriquecer. Naturalmente, ficaria por explicar a razão da esmagadora maioria dos pobres não cometer crimes ou o facto de eles estarem particularmente expostos à vitimação.

 

Há aqui mais de paradoxal. As curvas do crime tomaram uma feição ascendente quando o bem-estar colectivo se ampliou de forma singular. A partir de meados de 70, num curto espaço de tempo, a par da litoralização e da metropolização, o consumo de massas, a que os portugueses tiveram finalmente acesso, e o individualismo crescente transformaram profundamente a vida nas cidades. É nelas que se concentra o maior número de incidentes criminais e é aí que as pessoas se mostram mais inquietas.

 

A quantidade de objectos de desejo dilatou-se imensamente e também os objectos disponíveis para serem… furtados. A sociedade de consumo pressupõe precisamente que consumir seja um elemento central na definição das nossas identidades, seja ir ao teatro ou ter umas sapatilhas de marca. A necessidade de inscrição, pelo consumo, em certos planos existenciais pesa igualmente sobre pobres, ricos e remediados. O lado cruel é que as mesmas forças de mercado que encorajam um consumo voraz, excluem dele, através da expulsão do circuito do trabalho, vastas franjas da população. Ao contrário da pobreza antes consentida, a desigualdade transporta consigo um potencial de desagregação social. Esta diz respeito a muito mais do que aquilo a que costuma ser reduzida, o crime.

 

O risco agora é que os responsáveis pela ordem, encorajados pela troika que nos vigia, alargada a tolerância pelo medo, pretendam tirar proveito do alarmismo, fazendo estender o seu braço penal enquanto encurtam o braço social. Que empurrem ainda mais determinados grupos para uma posição recorrente de policiamento, agravando os mecanismos estruturais da desigualdade e fortalecendo o estigma que diz da pobreza ser uma variável da prática criminal. Nas reposições simbólicas da ordem são normalmente esquecidos os outros, os do colarinho branco.

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