Laura, de Otto Preminger (1944)

É um “filme sobre uma mulher que está morta quando a história começa, mas que nem por isso deixaremos de conhecer”

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 “I shall never forget the weekend Laura died”, conta, pausadamente, o colunista social Waldo Lydecker, enquanto observamos indiscretamente o interior do seu apartamento, as suas preciosas peças de colecção, até o seu quarto de banho, onde convida a entrar o detective da polícia que tinha vindo interrogá-lo.

Lydecker escreve um dos seus artigos sobre uma mesa especialmente adaptada à banheira de mármore, termina o banho, interrompe a escrita e, mantendo sempre a conversa com o detective, veste-se impecavelmente. A dicção da sua narração, a sua elegância e maneirismos personificam o requinte e o bom gosto desta produção e realização de Otto Preminger, enquanto o seu cinismo contribui para outras citações memoráveis, tais como a da resposta a um convite para recomendar comercialmente uma caneta de tinta permanente: “Eu não escrevo com caneta. Eu escrevo com uma pena de ganso molhada em veneno”.

É assim “Laura”, filme sobre uma mulher que está morta quando a história começa, mas que nem por isso deixaremos de conhecer, em retrospectiva, com tempo e com modo, desde a sua “criação” por Waldo Lydecker até à sua misteriosa morte e respectiva investigação pelo tenente da polícia Mark McPherson.

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Laura é um exemplo famoso do filme negro americano DR

Laura é Gene Tierney e seguiremos a acção da sua beleza distintiva sobre as vidas que com a dela se entrecruzam: o polícia (Dana Andrews, um subvalorizado actor das décadas de 40 e 50, sósia perfeito de Dick Tracy e o famoso Fred Derry em “Os Melhores Anos das Nossas Vidas”), o colunista e mentor (Clifton Webb, na sua estreia no cinema sonoro, cuja sofisticação e cinismo têm curiosa correspondência com os de Zachary Scott em “Mildred Pierce” e os de George Sanders em “All about Eve"), o seu noivo (Vincent Price, muito antes dos filmes de terror por que hoje é conhecido), a rival que lho disputa (Judith Anderson, a extraordinária Mrs. Danvers de “Rebecca”, Big Momma Pollitt de “Gata em Telhado de Zinco Quente”), a sua empregada doméstica.

Exemplo famoso do “filme negro” americano – noite, sombras, chuva intensa, neve, ambiente tenso, mistério, perigo iminente – destaca-se pelo refinamento estilístico, se descontarmos apenas dois ou três chapéus da protagonista e da sua rival Ann Treadwell, que por pouco não punham em causa a solidez da etérea construção que é um filme conseguido. Façamo-nos, portanto, desentendidos relativamente ao ridículo dos chapéus e apreciemos devidamente a sucessão de cenas meticulosamente iluminadas, enquadradas, decoradas, em composições de beleza e elegância a que a direcção dos actores e o seu desempenho dão a coesão e o sentido.

Falamos, afinal, da arte que parece ter atingido nessas décadas o auge do que pode ser feito com talento, coração e alma, quando para isso concorrem artistas de nível superior de vários ofícios, afortunadamente reunidos sob o mesmo projecto (e, desaparecidos os artistas, este “afortunadamente” é agora inteiramente dos espectadores interessados). É o caso do argumento trabalhado por Jay Dratler, Samuel Hoffenstein e Elizabeth Reinhardt a partir do romance de Vera Caspary, é o caso da música original de David Raksin e cujo tema, posteriormente transformado em canção com letra de Johnny Mercer, já conheceu mais de 400 gravações, é o caso, certamente, da direcção artística de Leland Fuller e Lyle Wheeler e dos cenários de Thomas Little e é o caso, muito seguramente, da direcção de fotografia de Joseph LaShelle, de que recordamos “Where the Sidewalk Ends” (1950) e “Marty” (1955). Melhor é difícil.

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