Abril, para um dos frutos da colheita de 1977

Sempre me incomodou a questão do que falta cumprir em Abril, por me parecer que se usa esta data para tudo e mais alguma coisa, numa espécie de “pan-abrilização” das aspirações do povo.

Em 1977, quando nasci, na minha amada cidade do Porto, obviamente que nem eu nem os meus pais sabíamos o que o futuro nos reservava. Filho de um cabeleireiro e de uma modista, lembro-me de, na infância, ainda pairar no ar a possibilidade de seguir a tradicional profissão paterna. Mas também me recordo que, quando entrei na escola primária (pública, como públicas foram as demais, onde concluí todos os meus graus), convivi com todas as classes sociais: filhos de trolhas e uma filha de médico, sendo certo que a maioria de nós provinha de classes económicas médias ou baixas.

Recordo-me de, ainda miúdo, ver, pela única televisão à altura existente, as comemorações do 25 de Abril e de ter perguntado aos meus pais o que acontecera em 1974. O meu pai, tendo combatido em Angola, lá me foi explicando e a ideia que retive – como qualquer criança de hoje – foi aquela visão maniqueísta que o mal acabara e que o bem prevalecera, na forma de liberdade, que eu, à época, achava que consistia em fazer o que quiséssemos.

Se uso a minha experiência pessoal, não é para responder ao “onde estavas no 25 de Abril?”, que Herman popularizou da boca de Baptista-Bastos. É sim para me afirmar, como aos da minha geração e a todos quantos nasceram depois do 25 de Abril, e que andam nos seus 40, como um produto da massificação do ensino e, sobretudo, do seu nível superior. Não tenho dúvidas que não fora aquela manhã plena e sublime, a coragem dos capitães de Abril e – não sejamos hipócritas – a conjugação de outros factores bem menos nobres, com grande probabilidade, hoje seria cabeleireiro. Nada contra, como é evidente. Mas a geração a que pertenço foi a primeira (ou quase) a ter a capacidade de ser aquilo que desejava e para que lutou. Aquela que exerce hoje uma profissão de que gosta (espera-se), à custa de investimento do Estado na nossa formação; que não teve de ser “filho de dr.” para fazer uma licenciatura e outros graus académicos. Aquela em que o esforço e o mérito foram compensados pela sociedade. Por isso, pelo acesso à educação, hoje é tempo de manifestar a minha profunda gratidão à minha família e às gerações que me precederam. Àqueles tantos que teriam sido excelentes médicos, advogados, arquitectos, engenheiros, professores, e não o puderam ser apenas por terem nascido em famílias pobres e/ou no interior de um Portugal orgulhosamente só, gerido como uma grande mercearia em que o dono do estabelecimento decide que produtos agradam aos consumidores. E se os vendedores apresentavam algo novo, censurava-os, por poder colocar ideias na cabeça dos compradores.

E as ideias são tramadas. De entre tantos, Malraux disse-o sempre: são elas o húmus de qualquer revolução e, por isso, nas ditaduras, de direita ou de esquerda, a ignorância é a água-benta do regime. Quando se questiona, os alicerces do que se tem por eterno abalam e é exactamente isso que hoje me assusta. Digo-o sem rodeios: faltam ideias e as pessoas, em regra, estão dispostas a pensar pouco. Vejo-o no meio académico, onde esperaria, como regra, que os meus estudantes fossem mais interventivos, mais rebeldes do prisma das ideias, que não aceitassem as coisas como um a priori imutável e sagrado. Atenção que não é este o discurso que detesto do “no meu tempo é que era bom”.

Os actuais jovens têm potencialidades fantásticas – conheço-as e convivo com elas diariamente. Mas também sofrem de “preguiça tecnológica”, embora mantenham a pulsão para o saber, por ser co-natural ao ser humano. Essa preguiça advém das maravilhas da tecnologia que nenhum de nós esconjura, mas que exige da parte de todos, sobretudo pais e educadores, a inteligência de a colocar ao serviço da inquietude, do desassossego, e não da passividade, do “não vale a pena”.

O 25 de Abril começou por não valer a pena na cabeça de muitos, e tantos morreram ou sofreram horrores simplesmente por ousarem sonhar os valores em que acreditavam. O PCP é credor (como o PS, embora de forma diferente) da nossa homenagem, e homens como Álvaro Cunhal, ainda que com o natural medo que todos sentimos, ousaram cortar amarras, aceitando a prisão e o sofrimento físico e psíquico. Para além de outros aspectos, o facto de, ao invés de tantos países europeus, ainda termos um Partido Comunista forte e com uma base de apoio sólida, deve-se ao papel que desempenhou na luta contra a ditadura. E, embora não sendo comunista, como democrata republicano, reconheço a grande utilidade do PCP no nosso sistema político e na luta pela concretização dos valores de Abril. Felizmente, o PCP não conseguiu substituir uma ditadura de direita por uma de esquerda, transformando-nos na famosa “Cuba da Europa”.

E aí há que prestar homenagem ao que muitos designam de “contra-revolução” de Novembro. Para mim, sempre a vi como o recentrar do programa de Abril e a abertura de portas a um Portugal moderno, democrata, livre, pluralista e fiel ao projecto europeu.

Sempre me incomodou a questão do que falta cumprir em Abril, por me parecer que se usa esta data para tudo e mais alguma coisa, numa espécie de “pan-abrilização” das aspirações do povo. Como se esta data inicial da nossa vida democrática fosse o repositório de tudo aquilo que validamente desejamos para nós e para a nossa comunidade. O constante do programa do MFA cumpriu-se. Simplesmente, ele era e é um programa intemporal e, por isso, de realização diária e prospectiva. “Democratizar” e “desenvolver” foram os desafios mais ousados, por nunca estarem cumpridos por natureza. É também essa a beleza da nossa Constituição de 1976, com o recentrar mais moderado da Revisão de 1982.

Hoje, sobretudo, agradeço a todas as gerações anteriores à minha, por me permitirem desenvolver as minhas capacidades, independentemente de os meus pais serem cabeleireiro e modista e de as minhas avós terem sido operária fabril e cozinheira na casa de um juiz, ou de uma das minhas bisavós ter sido hortaliceira. Tenho muito orgulho em todos eles, tal como me sinto muito feliz por ser português e olhar para o percurso trilhado desde aquela madrugada que nos libertou das grilhetas de quem não queria ler o tempo.

Sugerir correcção
Comentar