Revelado o mapa 3D mais completo da nossa galáxia

O catálogo do satélite Gaia inclui a posição de 1700 milhões de estrelas, a maioria na Via Láctea. Os cientistas portugueses envolvidos nesta missão desenvolveram ferramentas que permitem transformar a enorme massa de dados em imagens.

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Mapa a cores do céu, sobretudo da nossa galáxia, a Via Láctea. No canto direito inferior, a Grande e a Pequena Nuvem de Magalhães ESA/Gaia/DPAC/A. Moitinho/A. F. Silva/M. Barros/C. Barata/Universidade de Lisboa/H. Savietto/Fork Research

A nossa galáxia, a Via Láctea, é “apenas” uma entre tantas outras espalhadas pelo Universo incrivelmente gigante. Mas é aí que fica a nossa casa – a Terra, que anda em redor de uma estrela de tamanho médio, num dos braços em espiral da Via Láctea. Conhecer melhor a Via Láctea é, no fim de contas, saber mais sobre a nossa própria casa e os arredores. Esse é o contributo de um gigantesco catálogo com as medidas da posição de estrelas obtids pelo satélite Gaia e que a Agência Espacial Europeia (ESA) divulgou esta quarta-feira.

Lançado no espaço no final de 2013, o satélite Gaia tem estado a recolher, desde Julho de 2014, informações sobre estrelas. O objectivo principal é a elaboração do mapa mais rigoroso sobre a Via Láctea para responder, por exemplo, a questões sobre a sua origem e evolução, num Universo que surgiu há cerca de 13.800 milhões de anos no Big Bang. Já houve uma primeira divulgação de dados do Gaia em 2016, mas o novo catálogo, como nota a ESA em comunicado, eleva o censo sobre a Via Láctea para um novo patamar. É o censo mais completo da nossa galáxia.

Antes de mais, o novo catálogo tem a posição e o brilho de quase 1700 milhões de estrelas. E, entre elas, contém ainda a distância em relação a nós de 1300 milhões de estrelas, bem como o seu movimento aparente no céu, que se deve ao facto de se deslocarem em torno do centro da galáxia. Estas medidas têm uma precisão sem precedentes.

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Visão artística do satélite Gaia a mapear a Via Láctea ESA/ATG medialab/ESO/S. Brunier

A importância de um catálogo com este tipo de informações é que permite construir mapas tridimensionais com bastante exactidão da distribuição das estrelas na Via Láctea. “É o primeiro mapa 3D em grande escala para a nossa galáxia, baseado em medidas directas das posições das estrelas em relação a nós”, salienta precisamente André Moitinho de Almeida, do Centro de Astrofísica e Gravitação da Universidade de Lisboa e coordenador do grupo português (agora com oito investigadores) na missão do Gaia, um consórcio internacional que envolveu 400 elementos.

André Moitinho de Almeida acrescenta que o Gaia vai também ajudar a estimar o número de estrelas na Via Láctea, o que por sua vez permitirá calcular a quantidade de matéria existente na galáxia.

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A nossa galáxia e galáxias vizinhas: em cima, mapa do brilho e da cor das estrelas; ao centro, mapa da densidade total das estrelas; em baixo, as poeiras interestelares que preenchem a nossa galáxia ESA/Gaia/DPAC

Afinal, quantas estrelas há na Via Láctea? As estimativas mais conservadoras apontam para 100.000 milhões a 200.000 milhões, mas o astrofísico português pensa que serão dobro, chegando assim a 400.000 milhões. O Gaia será uma ajuda preciosa na compilação de um catálogo com uma amostra significativa de estrelas da Via Láctea, para, a partir daí, se calcular quantas estrelas existem na galáxia, como se distribuem e se movem nela.

Numa população de 400.000 milhões de estrelas – e o nosso Sol é, mais uma vez, “apenas” uma delas –, o novo catálogo até pode parecer muito pequeno. Afinal, os seus 1700 milhões de estrelas são uma ínfima percentagem das estrelas da Via Láctea. Mas ele é tudo menos pequeno.

O mapa 3D das estrelas e de como se movem pela nossa galáxia, que os dados do novo catálogo permitem criar com grande exactidão, vai agora até a alguns milhares de anos-luz de distância de nós. Até agora, refere André Moitinho de Almeida, os mapas deste género com maior exactidão iam a uma distância de apenas 300 anos-luz. “É extraordinário.”

Ainda que a maior parte das estrelas do catálogo fiquem na Via Láctea, o Gaia também apanha estrelas de galáxias na nossa vizinhança, como as Nuvens de Magalhães e Andrómeda. É em relação à Grande Nuvem de Magalhães que a missão trouxe igualmente novidades e que surgem como um bónus: vai possibilitar a criação de um mapa do movimento em 3D das estrelas dessa galáxia. Actualmente, conhecia-se o movimento (com bastante incerteza) de apenas algumas das suas estrelas, refere André Moitinho de Almeida. “Agora vemos isto com os óculos postos. Pode-se estudar em detalhe a dinâmica de uma galáxia externa.”

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Novo mapa da Grande Nuvem de Magalhães gerado pelos novos dados do satélite Gaia ESA/Gaia/DPAC/A. Moitinho/A. F. Silva/M. Barros/C. Barata/Universidade de Lisboa/H. Savietto/Fork Research

“Tornar o inimaginável inteligível”

O contributo do grupo português para a missão do Gaia centra-se sobretudo na criação de sistemas de pesquisa e de visualização dos dados. “O esforço está quase todo no desenvolvimento de sistemas para a visualização e exploração visual interactiva da enorme quantidade de dados produzidos pela missão. Assim, um dos aspectos incide na investigação e desenvolvimento de formas de tornar acessível, do ponto de vista perceptual, essa quantidade de informação avassaladora. Por outras palavras: tentamos tornar o inimaginável inteligível”, nota o astrofísico português, acrescentando que a informação é de acesso livre a todos.

“Além deste aspecto, o grande esforço tem sido posto no desenvolvimento de uma plataforma que permita aos utilizadores comuns, com os seus computadores e dispositivos móveis, visualizar interactivamente – e portanto explorar – o conjunto completo dos dados”, refere ainda o investigador, dizendo que se pode criar várias representações dos dados e fazer zoom in. “Este trabalho resultou no serviço de visualização oferecido na página Web da ESA, onde se acede ao arquivo. Foi totalmente concebido e criado no meu grupo e, até onde temos conhecimento, é o único no mundo em que qualquer utilizador pode fazer visual analytics do que se tem vindo a chamar Big Data. Este sistema não é específico para a astrofísica e é perfeitamente aplicável a qualquer outro conjunto de Big Data”, sublinha André Moitinho de Almeida. “A nossa ideia é explorar o seu uso noutros contextos” – por exemplo, aplicados aos censos da população de um país.

As imagens até podem parecer fotografias, mas na realidade são representações geradas a partir de tabelas cheias de dados. Quando o primeiro catálogo do Gaia foi tornado público em 2016, a equipa portuguesa gerou imagens que se tornaram “o ícone da missão”, como é o caso de uma visão global do céu e de (na altura) mil milhões de estrelas.

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O primeiro mapa do céu gerado pelo Gaia, em 2016, que se tornou icónico da missão ESA/Gaia/DPAC

Agora, no momento de divulgação do novo catálogo, uma das visualizações dos dados do grupo português volta a ser a imagem principal em destaque. É um mapa a cores do céu, sobretudo da nossa galáxia. As novas informações já originaram vários artigos científicos, que serão publicados numa edição especial da revista Astronomy & Astrophysics.

Espera-se que a missão do satélite Gaia seja prolongada até 2022, para se fazerem mais medições da posição e dos movimentos das estrelas. Além da astrofísica, um catálogo de posições estelares ultra-exactas pode servir de referência para os sistemas de posicionamento, como o norte-americano GPS ou o europeu Galileu, sendo essa outra aplicação possível destes dados.

Mas o Gaia não olhou só para longe. Aqui no nosso próprio sistema solar, mesmo dentro da nossa casa, rastreou as órbitas de asteróides próximos da Terra que representem uma ameaça de colisão. Para os vigiarmos melhor.

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