A guitarra de Bill Frisell contra os absurdos do mundo

Nome maior na 15ª edição do Portalegre Jazz Fest, apresenta-se sexta-feira em duo com Thomas Morgan. Ocasião para ouvir um dos inventores da sonoridade da guitarra jazzística e um homem que acredita haver na música lições suficientes para aplicar na vida.

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Em Portalegre Thomas Morgan e Bill Frisell farão a revisão de Small Town (2017) que agrupa oito temas de uma música distendida, uma sonoridade carregada de uma melancolia árida Claudia Engelhart/ECM Records

O título engana: há quatro anos, Bill Frisell lançou um álbum a que chamou Guitar in the Space Age!, mas em vez de se tratar de um disco em que a guitarra se vestia garbosamente de espalhafatosas roupas futuristas metalizadas, aquilo em que investia, pelo contrário, aproximava-se mais de um exercício nostálgico. E isto porque na cabeça de Bill Frisell estava a Era Espacial dos anos 50, da corrida ao espaço que acompanhava a Guerra Fria entre Estados Unidos e União Soviética, criando um curto-circuito temporal – um olhar sobre um passado obcecado em antecipar o futuro.

Nesse álbum de 2014, o músico norte-americano revisitava alguns dos nomes que primeiro o levaram a pegar numa guitarra. E isto tanto valia para canções de Pete Seeger (o Turn! Turn! Turn! popularizado pelos Byrds), de Lee Hazlewood, dos Beach Boys ou dos Kinks, quanto para temas de frenética guitarra surf segundo os mandamentos de Link Wray. Nesses curtos 14 temas quase se podia entrever uma pequena biografia musical da adolescência de Frisell, num criterioso mapeamento dos alicerces da sua linguagem. “Com esse álbum estava a pensar no período da minha vida em que estava a escutar guitarra pela primeira vez, quando tinha 12, 13, 14 anos…”, diz ao Ípsilon. “Há tanta música que tentava tocar nessa altura em que estava a começar, em que estava sempre a passar para outra coisa, com enorme velocidade.” Claro que este mundo, de um miúdo que então se agarrava à guitarra enquanto máquina do tempo, sonhando com aquilo que poderia vir a fazer e com as sonoridades excêntricas e inovadoras que se imaginava a alcançar, tudo isso correspondia a um universo pessoal.

E essa é, na verdade, uma das grandes glórias da carreira de Bill Frisell – ao conquistar o seu espaço, ao inventar uma noção de ocupação do espaço com a guitarra, criou um padrão sonoro que tem sido incessantemente emulado pelos seus colegas de profissão. O som de grande parte das guitarras no jazz parece levar, de facto, a assinatura de Frisell. O que corresponde, ao mesmo tempo, a um contra-senso: Frisell serve de modelo não enquanto alguém que estimula cada um a desenvolver a sua linguagem pessoal, mas como músico que já fixou uma sonoridade que muitos adoptam com a inevitabilidade de quem vai a um supermercado comprar café e se serve de uma das marcas disponíveis.

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No caso de Bill Frisell, é provável que o seu maior herói da guitarra tenha sido Jim Hall. Embora sobretudo pelo papel que a guitarra desempenhava no meio de outros instrumentos e outros músicos. A atenção de Frisell não estava, por isso, apenas naquilo que Hall tocava, mas também em perceber que lugar ocupava e como se relacionava com músicos da dimensão e musicalidade de Sonny Rollins, Bill Evans e Art Farmer. “Aquilo que realmente me interessava era perceber como o Jim Hall fazia parte desse grupo e foi através dele, na verdade, que comecei a ouvir todos os outros instrumentos e a perceber o quanto podia aprender com eles. É verdade que toco guitarra, mas posso pegar em todas essas influências e traduzi-las para o meu instrumento.”

Esse é um exercício que Bill Frisell faz com regularidade: apoderar-se de peças escritas para outros instrumentos e tentar vertê-las para a sua linguagem individual e de acordo com as ferramentas e as soluções que a guitarra lhe permite manobrar. Um dos exemplos é o tema 26-2, de John Coltrane, incluído originalmente no álbum póstumo The Coltrane Legacy (1970) – que juntava outtakes de vários discos anteriores, entre os quais Coltrane’s Sound, as sessões de onde 26-2 foi respigado – e um exemplo de uma prática que o saxofonista gostava de explorar ao perverter peças alheias e reorganizá-las a partir de algumas alterações harmónicas. Em 26-2, o alvo é Confirmation, de Charlie Parker.

“É um daqueles temas em que nunca vou conseguir acertar com a interpretação”, confessa Frisell. “Simplesmente porque é demasiado difícil de tocar. E então estou sempre a tentar, a tentar, a tentar. Há muitos temas assim. O Coltrane era alguém que pude sempre admirar e tomar como modelo, como grande inspiração, pela forma como a pessoa influenciava o músico. Era um tipo de uma enorme dedicação e que abordava a música de uma forma muito séria. Mostrou-nos a todos a importância de não fazer cedências e de se manter fiel àquilo em que acreditava.” São essas as razões pelas quais, em momentos de dúvida ou em que se sente perdido, em vez de se voltar para a religião ou qualquer outra forma de consolo espiritual, Frisell diz procurar os exemplos de Coltrane, Thelonious Monk ou Charles Ives – “e muitos outros músicos que nunca receberam o devido reconhecimento durante o seu tempo de vida”, acrescenta – para procurar o seu norte. Dois ou três comprimidos de Coltrane e qualquer situação de fraqueza é atacada pela raiz.

“Tocar 26-2”, remata o guitarrista, “lembra-me sempre o quanto tenho ainda a percorrer enquanto músico e o quanto preciso ainda de trabalhar.” E garante que, logo que a entrevista realizada por Skype termine, vai praticar de imediato o tema. Como exercício técnico, de humildade e de modelo artístico.

Lições para a vida

Bill Frisell é o nome de peso da 15ª edição do Portalegre Jazz Fest. É por lá, pelo Centro de Artes do Espectáculo da cidade alentejana, que passará esta sexta-feira, em duo com o contrabaixista Thomas Morgan. Em revisão deverá estar o material que compõe o álbum Small Town, lançado em 2017 pela ECM, e que agrupa oito temas de uma música distendida, na exploração mais típica da sonoridade carregada de uma melancolia árida a que tantas vezes recorre e que lhe enche de pó as cordas da guitarra, um sorvedouro das paisagens abertas do território norte-americano. Longe, portanto, da música turbulenta que assinou enquanto parte dos Naked City de John Zorn, menos distante de alguns dos seus mais iluminados projectos recentes, como o Lágrimas Mexicanas que o uniu (uma vez mais) ao brasileiro Vinicius Cantuária.

O primeiro encontro entre Bill Frisell e Thomas Morgan aconteceu pela mão de um outro ex-Naked City. Em 1999, antes da gravação de We’ll Soon Find Out, Baron quis testar as suas composições com o quarteto que reunira, mas perante a impossibilidade de Ron Carter se lhes juntar em tempo útil, Baron chamou o jovem estudante Thomas Morgan para ensaiar o reportório com Frisell e Arthur Blythe. “E foi incrível”, recorda o guitarrista, “porque o Thomas tocou exactamente aquilo que o Ron Carter ia tocar. Mas na altura não me apercebi da totalidade daquilo que ele andava a fazer.” Só mais tarde, com o reencontro para o registo de The Windmills of Your Mind (2011), álbum liderado pelo baterista Paul Motian, Frisell sentiu “uma ligação fortíssima” à música que o contrabaixista lhe propunha.

Foi a partir dessa ocasião que o duo começou a tomar forma, para depois se efectivar numa residência de uma semana no mítico Village Vanguard, em Nova Iorque. A relação entre os dois foi crescendo, mas nunca a ponto de Bill Frisell se sentir preparado para qualquer concerto ou gravação. De resto, é coisa que nunca lhe acontece. Desde sempre. “Nunca me sinto preparado”, confessa. “Tenho desde que me lembro a sensação de que a música não está terminada. E sinto sempre que devia ter feito isto ou aquilo diferente, esse sentimento é algo que nunca me abandona.” Tal ideia de incompletude é, provavelmente, ampliada pelo facto de Frisell ter uma agenda de tal maneira preenchida que o tempo de preparação de um disco ou uma digressão não permitem planos muito ambiciosos. O que não é necessariamente mau: “Às vezes gostava de ter mais tempo para preparar as coisas, mas ao mesmo tempo é um sentimento fabuloso, como se estivesse a nadar na música o tempo todo, como se estivesse imerso nela.”

E estar imerso na música, admite, permite-lhe também vir à tona apenas o tempo indispensável para se assustar com a realidade. A música para Bill Frisell serve como escudo que o protege do mundo, que lhe proporciona um refúgio ou um abrigo das “tantas coisas loucas e absurdas que estão a acontecer a toda a hora”. “Claro que é um escape, mas acredito também que a música pode ser um modelo para a forma como as pessoas podem estar e trabalhar juntas.” E cita as harmonizações vocais como exemplo de reunir diferentes timbres para alcançar um acorde colectivo ou o contraponto como forma de lidar com o conflito e a sua resolução. A música, para Bill Frisell, está cheia de sinais e chaves para descortinar e aplicar no dia-a-dia. Essa coisa de encadear notas é só o princípio. Depois vem tudo aquilo que as notas sugerem como lições para a vida depois de desligado o amplificador.

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