The Handmaid’s Tale e o namoro firme entre televisão e literatura

Se a televisão existisse como a conhecemos há 100 anos talvez Steinbeck ou Hemingway tivessem ousado fazer literatura com imagens e som. A especulação é legítima quando se ouve Salman Rushdie afirmar que muita da literatura mais estimulante está a ser escrita para séries televisivas. É um mundo novo a desafiar fronteiras quando se estreia a segunda temporada de The Handmaid’s Tale,obra que ganha vida para lá da sua criadora, Margaret Atwood.

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Na República de Gileade as ruas são como museus, “os relvados estão arranjados, as fachadas são graciosas”, como numa fotografia de uma comunidade idealizada dos anos 50. Esse país existe no lugar onde antes esteve outro país, os Estados Unidos da América. Depois, um golpe de Estado derrubou o presidente e um grupo de ultra-conservadores tomou o poder, alterou a Constituição e instalou uma sociedade teocrática, fundamentalista, misógina, opressiva. Ainda em Gileade, as mulheres zelam pela vida doméstica, garantem a procriação numa sociedade envelhecida, cuidam da manutenção dos costumes e em tudo isso têm o duplo papel de vítimas e carrascos. São elas quem policia mais de perto e dão a primeira punição às mulheres que não cumprem as boas regras de civilidade estabelecidas. Este mundo distópico foi imaginado pela canadiana Margaret Atwood num livro publicado em 1985. Chama-se The Handmaid’s Tale (A História de uma Serva na edição portuguesa da Bertrand, de 2013) e é hoje o mais conhecido e celebrado livro de Margaret Atwood. Mais de trinta anos depois foi adaptação a uma série de televisão, onde cada capítulo funciona como um episódio e tudo acaba com uma interrogação: “Alguém tem perguntas?”  

Havia uma. Poderia a série continuar quando não havia mais livro? Pode. A segunda temporada está aí e isso dá que pensar.

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No ano passado, após a estreia da série, um artigo publicado na New Yorker chamava a Margaret Atwood rainha da distopia. Já o era muito antes disso mas agora ganhou o estatuto de grande oráculo REUTERS/Mark Blinch/Files

Em 1985, Gileade [na edição portuguesa do romance o nome da república distópica foi reduzido, mas na série mantém o original Gilead] era um lugar num futuro próximo que se tornou ainda mais credível trinta anos depois do romance e graças a uma dupla circunstância: a vitória de Donald Trump em 2016, após uma campanha pelo menos depreciativa para o género feminino. As vendas do livro subiram e os produtores de televisão, atentos, não demoraram a transformá-lo numa série. Com produção da Hulu, estreou-se na Primavera de 2017 em streaming e transformou-se num caso exemplar de namoro entre realidade e ficção, literatura e televisão com Atwood, aos 79 anos e uma vasta obra, a ganhar estatuto de quase estrela pop. No ano passado, após a estreia da série, um artigo publicado na revista New Yorker chamava-lhe rainha da distopia. Já era muito antes disso. Grande parte dos seus 16 romances, bem como muitos contos e poemas, além de ensaios, crítica, num total de 60 títulos publicados, passam-se nesse território que é a antítese da utopia e que ela gosta de designar como ficção especulativa. Mas, o facto é que há apenas um ano o mundo, além do literário, passou a saber disso. Culpa, em parte, da tal série de televisão que a projectou como nunca, com o seu nome associado — alto e bom som — ao activismo feminista e ambiental, sobretudo, presença regular no Twitter desde 2009 e mais de um milhão e meio de seguidores. Por lá, há testemunhos de que não faltou quem visse em Gileade a metáfora da América actual e lesse o livro — e visse a série — à luz da actualidade. 

Por tudo isto, se já antes Atwood era mencionada como forte candidata ao Nobel da Literatura, depois da série, depois de Trump, passou a estar no topo das apostas. Ganhou o estatuto de grande oráculo e o romance que gerou a série foi o livro mais vendido em 2017, segundo dados da Amazon, à frente de títulos como Harry Potter e a Pedra Filosofal, de J. K. Rowling, e The Game of Thrones, a série de George R. R. Martin também adaptada à televisão e que desafiou as regras da teoria narrativa: o escritor ainda não terminara o último livro e os autores do guião já incluíam cenas desse livro por acabar. A obra ultrapassava o seu criador, alterando a ideia de autoria literária.

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Estamos em território rico. The Handmaid’s Tale, obra de Margaret Atwood, também faz história e  vai ter outra vida na televisão para lá de Atwood, mas com a benção da escritora. Ou seja, ela criou um mundo que outros vão continuar agora num medium diferente. Que nome dar a esta realidade? Talvez co-autoria. Ainda é tudo muito recente para definir a relação cada vez mais próxima entre literatura e televisão e que parece estar a alimentar uma e a outra. Há menos de um ano, interrogada acerca da possibilidade de haver uma segunda temporada, Atwood respondeu que, a acontecer, “isso levar-nos-ia para um território desconhecido”. A força da afirmação reside no facto de ela ter vindo da autora do original que parece escapar-lhe, ganhando uma autonomia que irá depender de outros escritores. Há uma roda oleada. A televisão conquista um público que parecia ter perdido para sempre, naquilo a que muitos designam como a terceira era de ouro televisiva ou o renascimento da televisão; há romances a sair da sombra e a ganhar novos leitores, e escritores que encontraram na escrita para televisão um espaço criativo estimulante e outros ainda que conseguem viver da escrita graças à venda de direitos, acto muito mais lucrativo do que os royalties que resulta da venda em livraria. Mas há mais, por exemplo, ainda no caso de Atwood já levou à adaptação de outro dos seus romances, Alias Grace, original de 1996 sobre um assassínio no Canadá rural. Foi para o Netflix.

“As séries de sessenta minutos são uma das novas grandes contribuições para a literatura”, afirmou Salman Rushdie numa entrevista à Ler em 2016, acrescentando que gostaria de experimentar o meio. Uns anos antes, em 2011, ao Observer, já dissera que a televisão se tornara o meio por excelência “de alguma da escrita mais sofisticada” e comparava as séries televisivas aos romances, que considerava terem suplantado em qualidade literária a indústria cinematográfica. Nessa altura pensava escrever uma série de ficção científica e apresentava duas grandes inspirações: Os Sopranos Mad Men. “É como ter o melhor de dois mundos, poder trabalhar em produções como as do cinema, mas ter controlo sobre o trabalho”, referiu então, e foi mais preciso: “No cinema, o escritor é apenas um criado, um empregado. Em televisão, nas séries de 60 minutos, como The Wire, de David Simon, série já apelidada de um Dickens dos tempos modernos, ou Mad Men, que equipararam no estilo a John Cheever, o escritor é, em contrapartida, o principal artista”. Na mesma altura, outro escritor, o britânico Philip Hensher, finalista do Man Booker Prize em 2008 com The Northern Clemency, firmava que a vastidão de personagens em muitas das séries norte-americanas era comparável às que vimos em algumas dos maiores trabalhos de Charles Dickens. 

É a América a dar cartas numa área onde a BBC comandou nos anos 80 ou 90 do século passado, com adaptações de clássicos como Reviver o Passado em Brideshead (original de Evelyn Waugh). Mas agora é diferente e há a destacar, entre outras características, uma maior proximidade entre assistir a uma série televisiva com o acto de ler um romance. É o resultado das novas possibilidades de consumir televisão, fruto do desenvolvimento de novas tecnologias associado a alterações no mercado, onde os nichos podem gerar grandes receitas publicitárias e motivar investimento. Um círculo perfeito. Dito isto, e de modo muito sucinto, o espectador de televisão pode hoje escolher como, quando e em que moldes assistir a uma episódio ou temporada, do mesmo modo que o leitor do livro pode gerir o o modo como lê um livro; fazendo paragens, recuando, fragmentando. Ele decide.

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Mudança lenta e sólida

E tudo aconteceu lentamente. As séries referidas por Rushdie corresponderam a pontos de viragem. Há quem aponte a génese deste fenómeno precisamente com a estreia de Os Sopranos, em 1999, com argumentistas como David Chase, Terence Winter, Robin Green, Mitchell Burgess ou Matthew Weiner, mas alguns recuam mais no tempo, até 1981 e à Balada de Hill Street criada por Michael Kozoll e Steven Bochco. As novas séries tentam ser um reflexo da sociedade, com personagens trabalhadas, enredos complexos, mergulhando na consciência e ambiguidade humanas, evitando clichés, explorando formas de transmitir, pela imagem, som e palavra uma subjectividade e profundidade que parecia território exclusivo da escrita. Criados de origem ou adoptados de obras literárias, cada episódio destas séries continha uma sub-intriga que se resolvia ao fim de 60 minutos, mas deixando as possibilidades abertas para o que podia seguir e não, como em muitas telenovelas ou soap opera — para adoptar a terminologia americana —, terminar um episódio num clímax que servia apenas para criar o suspense para o episódio seguinte, e apelando a uma visão ou leitura mais literal do que a simbólica, intertextual, metafórica associada ao romance e que se observa agora em The Handmaid’s TaleBig Little Lies — outra adaptação de um romance de Liane Moriarty, prestes a ter sequela na televisão — ou Black Mirror, série mais próxima de um volume de contos do que do romance, mas igualmente literária, ou seja, usando artifícios da literatura que vão além da voz off, muito usada no cinema e que se tornou comum em Donas de Casa Desesperadas, Arrested Development - De Mal a Pior ou, mais uma vez, The Handmaid’s Tale. De sublinhar, que uma das razões pelas quais a adaptação do romance de Atwood ao cinema terá fracassado e desgostado à autora terá sido o facto de o realizador, Volker Schlondorff, ter prescindido da voz da narradora quando em 1990 transformou o livro num thriller, com Faye Dunaway e Robert Duvall. 

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Mas os recursos literários que estas séries parecem não ver como limitações mas antes como desafios a conciliar com a imagem, vão longe. Passa pela múltipla perspectiva, a ambiguidade narrativa, o uso da terceira pessoa que não é necessariamente o narrador, o protagonista como um anti-herói, como em House of Cards, uma ambiguidade que leva o espectador a duvidar de que o que vê corresponde ao que se pode chamar a verdade da história. Na televisão, como no romance, tenta-se reinventar o género e um modo de contar histórias que fuja ao convencional. Por isso escritores como Jonathan Franzen inicialmente renitentes em relação às séries, aderiram e revelam o interesse em envolver-se mais no género. Depois de ter participado na adaptação do seu Correcções (D. Quixote, 2010), Franzen, um fã de Breaking Bad, entusiasmou-se com a conversão de Purity (D. Quixote, 2016), o seu mais recente romance, em série a ser protagonizada por Daniel Craig, o ex-007. A estreia anuncia-se para breve e teve Franzen como um dos argumentistas. O seu romance é em tudo diferente das novelas sociais do século XIX, mas ele compara as actuais séries com um género onde se destacaram nomes como o de Charles Dickens. O autor inglês é sempre um dos mais referidos quando se fala da ligação entre literatura e séries televisivas. “Ele escrevia da mesma maneira que se escrevem esses programas - tentando abrir espaço para o episódio seguinte”, disse numa entrevista em 2016, quando se anunciou que Purity, o romance, passaria a Purity, uma série. E dizia mais: “Há algo muito gratificante em histórias episódicas como essas. É  muito diferente de navegar na Internet porque se tratam de narrativas reais sustentadas, cuidadosamente criadas e com significado.”

Franzen é só mais um nome de peso a juntar a outros que têm formação e uma carreira na literatura em vez de currículo no cinema ou na televisão. Vêm de cursos de escrita criativa de universidades de renome, são escritores como Philipp Meyer que recentemente ajudou a adaptar seu romance O Filho (Bertrand, 2014), à televisão, mas também Jonathan Lethem outro nome respeitado nas letras norte-americanas, que já trabalhou em guiões de cinema e se disponibilizou a escrever para televisão. São muitos, quem quiser seguir de perto basta ler as páginas do New York Review of Books, o suplemento literário que passou a contemplar séries televisivas. Nessas páginas, como em muitas outras de muitos suplementos literários, também foi notícia que Atwood, apesar de não participar na escrita da segunda temporada de The Handmaid’s Tale, participaria como uma espécie de consultora depois de ter entrado como actriz numa cena da primeira temporada. Pediram-lhe então que desse uma bofetada na protagonista e ela recuou: “Não a vou magoar?” Quem viu sabe o que se passou. Agora está tudo em aberto. “Alguém tem perguntas?”

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