Regionalizar para descentralizar?

A relevância do que se pretende mudar e o modo como está a ser feito levantam diversas questões e interrogações.

1. Quase meio século após a restauração da democracia, Portugal persiste como país excessivamente centralizado em termos culturais, políticos e administrativos. Situação que constitui um dos principais obstáculos ao desenvolvimento económico e social. Neste quadro, a descentralização, uma das principais bandeiras governativas de António Costa, não é só pertinente. É urgente. Contudo, para além da preocupante ausência de debate público, a forma como está a decorrer o processo coloca duas interrogações que importa discutir e esclarecer devidamente: a municipalização de competências é viável e sustentável? Uma descentralização racional e eficiente não exigirá o estabelecimento de instâncias intermédias, com a criação das regiões administrativas consagradas na Constituição?

2. A descentralização consta do programa do Governo e tem sido uma reiterada aposta do primeiro-ministro. António Costa é um profundo conhecedor das administrações central e local e tem a seu crédito a promoção, enquanto presidente da Câmara Municipal de Lisboa, do bem-sucedido processo de reorganização administrativa da cidade e de transferência de competências para as novas freguesias.

Mas em que consiste a descentralização que está em cima da mesa? Fundamentalmente, trata-se da transferência de competências da administração central para os municípios, com destaque para as áreas da Educação e da Saúde. Do programa do Governo e dos primeiros anúncios, constavam a criação das regiões metropolitanas de Lisboa e do Porto e a eleição das direcções das Comissões de Coordenação (CCDR). Entretanto, estes dois objectivos foram abandonados. Têm decorrido negociações entre o Governo e o PSD, foi anunciado que esta transferência de competências será dotada com um aliciante pacote financeiro de 1,2 mil milhões de euros e o PSD já deu o seu acordo, exigindo somente conhecer como vai ser distribuído o bolo pelos municípios. A relevância do que se pretende mudar e o modo como está a ser feito levantam diversas questões e interrogações.

3. Começo com uma declaração de convicções. Sou um defensor da descentralização. Já escrevi e expressei publicamente, vezes sem conta, que Portugal continua fortemente centralizado em termos culturais, políticos e administrativos. O centralismo asfixia a economia, tolhe a acção e o fortalecimento da sociedade civil e concorre para o desordenamento do território. A minha experiência de 40 anos de trabalho profissional na administração central e local, conjugados com os 16 anos em que fui membro de uma Assembleia Municipal ou vereador, faculta um conhecimento das realidades para sustentar interrogações e opiniões sobre a descentralização. Não serei eu a meter areia na engrenagem do processo de descentralização, mas tenho fundadas dúvidas e divergências sobre o processo em curso, as quais considero necessário expressar publicamente.

4. A primeira questão que me preocupa é a total ausência de debate público sobre uma problemática de primordial importância. É certo que o assunto tem sido discutido entre o Governo e a Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP), no seio da qual se têm manifestado, igualmente, dúvidas e divergências. Mas, tratando-se de uma problemática central da arquitectura da administração territorial do Estado e da sua governabilidade, é avisado, diria mesmo obrigatório, que se promova um debate no espaço público.

5. Devemos interrogar-nos se será sustentável a municipalização de competências que o Governo e o PSD se preparam para aprovar.

A malha e a dimensão média dos municípios portugueses eram consideradas adequadas há décadas atrás. E até ganhavam na comparação com os equivalentes espanhóis, franceses e italianos. Mas esta apreciação estava relacionada com uma época dominada pela infra-estruturação e equipamento básicos do território. Tudo mudou com o avanço da globalização e com o aumento da competição entre países e territórios. Também os factores da inovação, da gestão e da tecnologia, a par do incremento das mobilidades e da escassez de recursos financeiros, fazem ressaltar os desajustamentos do actual mapa municipal, face às exigências dos territórios e à disponibilidade dos meios financeiros e de recursos humanos qualificados. O quadro seguinte apresenta a dimensão populacional dos municípios portugueses à data do censo de 2011:

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A nível nacional, insistindo-se na via da municipalização, só a profunda reorganização da malha municipal – por agrupamento, fusão ou extinção de concelhos – viabilizará uma descentralização sustentável. Doutro modo, consumar-se-á uma descentralização “sem rede”, marcada pela insuficiência de recursos humanos qualificados e condenada ao desperdício de recursos financeiros. Cabe aqui perguntar ao Governo onde estão os estudos que justificam a viabilidade da municipalização de competências e volume de recursos financeiros anunciado. Se existem, divulguem-nos. Se não existem, façam-nos. Não sendo o número de habitantes o único parâmetro para avaliar a pertinência da autonomia municipal – a área, a interioridade e a identidade histórico-patrimonial também devem ser consideradas –, ele é um aferidor fundamental dos desajustamentos da malha municipal relativamente às realidades e necessidades contemporâneas. O desempenho das competências e os recursos financeiros agora em equação exigem escala e recursos humanos qualificados para a sua gestão eficiente e sustentável. O que fez António Costa em Lisboa? Agregou as freguesias de menor dimensão, reduzindo o seu número de 53 para 24, assim ganhando escala e massa crítica para assumirem competências que eram da câmara municipal.

6. O caminho sustentável para a descentralização está consagrado nos artigos 255 e seguintes da Constituição: a criação das regiões administrativas. Falta em Portugal um nível intermédio de administração territorial para levar a cabo uma descentralização com escala racional e consistente. Para as regiões, seriam transferidas as competências das CCDR e dos serviços desconcentrados do Estado (Educação, Saúde, Segurança Social, Emprego, entre outros), bem como os funcionários que já exercem a sua actividade regionalmente. Há que encarar a regionalização como um meio para descentralizar. Não se trata de instituir novas estruturas e cargos políticos ou de criar empregos para clientelas. As regiões deverão ter executivos reduzidos e apostar em conselhos regionais representativos e participativos. Critério mandatório a assegurar neste processo de regionalização/descentralização é que não haja aumento de funcionários: com a transferência de competências, transitam os recursos humanos que já existem.

Será oportuno reabrir o debate sobre a regionalização? Existirão as condições para que esse debate se realize num quadro bem informado, em profundidade e com serenidade? Em minha opinião, repensar a natureza, funções e arquitectura de um Estado moderno, descentralizado e solidário, impõe que se equacione a regionalização e sobre ela os cidadãos se pronunciem. Em caso de a rejeitarem, a alternativa será optar por outras modalidades de descentralização, só possível com o reagrupamento dos municípios.

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