A oportunidade do digital e as músicas no exílio

Terminou o Atlantic Music Expo, em Cabo Verde, com uma reflexão obrigatória sobre a distribuição digital da música no continente africano. No palco, vénias para as actuações de Sofiane Saidi e Malika Tinolien. Depois, só a polícia parou os magníficos Bulimundo no arranque do Kriol Jazz.

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Malika Tirolien Cristiano Barbosa / AME
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Sofiane Saidi & Mazalda Cristiano Barbosa /AME

Foi há cerca de um mês que, mais de 60 países depois, a plataforma Spotify entrou pela primeira vez em solo africano. O streaming é praticamente inexistente num território cuja forma preferencial de escutar música online se faz através do YouTube. “É a única plataforma digital que chega ao nosso público”, afirma Binetou Sylla, directora da Syllart Records, a editora senegalesa que o seu pai fundou em 1978 e que nos anos seguintes, mercê de edições de nomes como Orchestra Baobab, Africando, Oumou Sangaré ou Salif Keitá, construiu um dos mais preciosos catálogos da música africana. Só através do YouTube, cujo retorno financeiro é extremamente escasso, Binetou afirma conseguir alcançar aquele que deveria ser o primeiro público dos seus lançamentos, numa altura em que o colapso das vendas em formato físico se espelha um pouco por todo o lado.

As palavras de Binetou Sylla são das primeiras que se escutam no Atlantic Music Expo (AME) numa conferência dedicada à distribuição digital em África. E aquilo que rapidamente se percebe ao escutar José da Silva, o homem que mostrou ao mundo Cesária Évora na sua editora Lusafrica (actualmente presidente da Sony Music na Costa do Marfim), é que, se “os africanos adoram e ouvem música o dia todo”, os países estão ainda mal preparados para receber aquela que é hoje a forma mais popular e acessível de ter à disposição um arquivo gigante de música à escolha. Falta, diz Djô da Silva (como também é conhecido), actuar junto dos governos para adequar as leis e precaver os direitos de autor, assim como sensibilizar as operadoras de telecomunicações num mercado em absoluta expansão no consumo de smartphones – mas em que a possibilidade de contratar um uso mensal ilimitado de Internet não existe em grande parte destas regiões.

O panorama pode, no entanto, estar prestes a mudar. Não apenas por força do lobby em curso para introduzir as alterações estruturais necessárias, mas porque a demora do Spotify em instalar-se em África abriu portas, por exemplo, para o nascimento da Muska, serviço de streaming que promete arrancar a 5 de Maio em Cabo Verde e pouco depois na República Democrática do Congo, e que reclama um papel que, no entender do responsável pela plataforma Djo Moupondo, não deveria ser deixado nas mãos dos tubarões planetários – Spotify, Deezer, Tidal, Google Play Music, etc. Não só porque isso contribuiria para o desenvolvimento da indústria local, como, concordam os conferencistas, todos eles revelam um enorme desconhecimento da música africana.

Talvez, ficando por resolver o problema da justa remuneração pelo seu catálogo, Binetou Sylla consiga então solucionar uma das questões fundamentais da sua editora: fazer chegar a música aos seus principais interessados: “Tenho muita música congolesa, mas que não chega ao Congo”, desabafa.

Música como liberdade e salvação

Uma questão semelhante àquela que se mantém como uma nuvem pesada sobre a cabeça do argelino Sofiane Saidi. Tendo emigrado para Paris aos 17 anos, em fuga da emergência da Frente Islâmica de Salvação e da guerra civil que se seguiu em 1991, o músico deixara para trás dois anos em que se infiltrara nos circuitos de casamentos e cabarets na Argélia para cantar raï, na altura “uma música um pouco interdita, muito no início dessa revolução”, que juntava sintetizadores e guitarras eléctricas a um estilo local fundado na tradição, diz ao PÚBLICO. Tendo crescido a escutar rock americano e pop inglesa, graças a uns tios que viviam nos Estados Unidos e que abasteciam a sua casa de discos de vinil sinónimos de miragens musicais de outros mundos, o raï foi para Sofiane a descoberta de uma música “directa, que falava mais aos jovens, e que permitia um sentimento de liberdade, graças às letras e ao estado de espírito que veiculava”.

A nuvem pesada, esclareça-se, tem que ver com a afirmação de Sofiane – autoproclamado “príncipe do raï 2.0” – como um músico de óbvios méritos artísticos a comandar a banda que o acompanha (Mazalda) na construção de uma magnética sonoridade magrebina, mas que permanece arredado dos palcos argelinos. “Não compreendo porquê”, lamenta, depois de ter sido apadrinhado por Natacha Atlas e ter cantado com os Acid Arab, construindo um destacado perfil internacional. “Talvez seja porque não estou dentro, não pertenço ao sistema.” Orgulhoso de ter visto Khaled chegar com a expressão mais popular do raï ao Central Park, em Nova Iorque, não percebe como, no seu caso, não consegue sequer uma oportunidade para mostrar a sua música em casa.

É uma interrogação que se torna mais ruidosa depois de Sofiane Saidi mostrar no palco do AME como a sua voz grave e rugosa inflama uma música urgente, dentro da qual canções febris deixam que o Magrebe se aproxime do jazz e até, graças à sua postura vocal, do flamenco. É uma música quente, delirante, que estabelece uma ligação intensa e imediata com o público cabo-verdiano – algo que se imagina poder repetir no próximo Festival Músicas do Mundo, em Sines.

De Malika aos Bulimundo

Se a condição do exílio está naturalmente presente na música de Sofiane Saidi na última noite do AME, não é também estranha à definição de uma identidade artística longe do país natal que se entrevê nas composições de Malika Tinolien. Nascida em Guadalupe, a sua música pouco ou nada tem de caribenha. Em grande parte porque, quando partiu para o Canadá para se licenciar em música, Malika sucumbiu aos encantos do jazz. E aquilo que se lhe ouve em palco, em Cabo Verde, é um encontro entre essa descoberta em adulta e a música soul que foi a banda sonora da sua infância.

Não espanta por isso que as magníficas canções que lhe ouvimos, com doses iguais de musculatura rítmica e vulnerabilidade melódica (interrompida por frequentes e impressionantes explosões vocais), entronquem numa árvore genealógica que ramifica também até Esperanza Spalding, Alicia Keys ou Erykah Badu. Com a vantagem de Malika, descoberta enquanto voz de um espectáculo do Cirque du Soleil (La Nouba) após um período de desencanto com a música, ter sabido não ficar na sombra dessas referências e inventar o seu próprio planeta sonoro. E se Sofiane teve de deixar o país para não ver o seu caminho barrado pela instabilidade social, dir-se-ia que Malika se viu obrigada a partir a fim de descobrir para onde queria ir.

Nas últimas duas noites de actuações, o AME valeu sobretudo por estes dois perfeitos exemplos de como – assim o diz o argelino – “a música pode salvar”. Mas assim que o AME terminou, logo o palco deu início, na mesma noite, ao arranque do Kriol Jazz, com a homenagem (protagonizada pelos próprios) a duas instituições da música cabo-verdiana: Os Tubarões e Bulimundo. Se os primeiros não passaram de uma actuação tépida, os Bulimundo levaram o público a um delírio a roçar a histeria colectiva, no seu inimitável estilo de funaná endiabrado – mas em que a candura também tem lugar, ou não fosse esta a banda daquela voz tão funda e tocante quanto a de Zeca di Nha Reinalda.

Só a polícia, dada a hora avançada, os conseguiu parar. E por pouco não houve uma revolta popular. O Kriol não podia ter começado melhor. A música, quando tem a centelha da revolução, nunca deixa de inquietar e animar os espíritos.

O Público viajou a convite do AME e do Kriol Jazz

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