Neurocirurgia do São João deixa os contentores ao fim de 11 anos

Obras no piso que vai albergar o serviço de neurocirurgia arrancaram nesta segunda-feira. Director do serviço considera "deploráveis" as actuais condições das infra-estruturas que foram pensadas para "um ou dois anos" em 2007.

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As diferentes cores do piso denotam as reparações feitas ao longo destes 11 anos Adriano Miranda
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O espaço destinado aos profissionais de saúde deste serviço é por vezes utilizada como sala de pensos, caso não haja quartos livres. Adriano Miranda
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A questão nas enfermarias, diz o director do serviço de neurocirurgia, Rui Vaz, é a dificuldade de acesso às camas das pontas, em caso de emergência Adriano Miranda
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Este é um dos quartos poucos individuais - num serviço com 44 camas -, que perdeu a luz natural para o contentor que foi colocado em frente, à medida que o serviço teve necessidade de crescer Adriano Miranda
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Em 2007, o director do serviço de neurocirurgia do Hospital de São João, no Porto, não podia dizer que a mudança para instalações provisórias lhe desagradasse. "Os contentores são caros, portanto seria de esperar que os desocupássemos depressa, para que se gastasse menos dinheiro." A lógica de Rui Vaz "batia certo", até que a realidade se meteu no caminho. As obras foram suspensas com a crise económica e nunca retomadas, fazendo com que o serviço funcione há 11 anos em contentores. Onde chove e o chão cede com frequência, onde há frio e onde os profissionais levantam questões quanto à segurança dos utentes. No hospital que está no epicentro de uma polémica devido às condições precárias da ala de pediatria, há um outro serviço no qual quem lá trabalha classifica como "deploráveis as condições em que os doentes são tratados", devido às infra-estruturas. As obras arrancaram esta segunda-feira.

Este é um cenário que Rui Vaz, director do serviço, anda a repetir há anos: a falta de segurança e de conforto, os riscos de infecção e a consequente desmotivação de uma equipa "altamente diferenciada". "As condições de assepsia estão muito longe do que deve ser. Tenho condições de conforto e de segurança que são completamente inaceitáveis. Com os doentes metidos numa ponta de uma enfermaria, se tiver uma emergência, não chego lá", descreve o director de um serviço que tem 44 camas para internamento e no qual em são operadas 1400 pessoas por ano (com tumores cerebrais, traumatismos cranioencefálicos, patologias de coluna, ruptura de aneurisma ou outras patologias neurológicas, como a doença de Parkinson, por exemplo).

Sem privacidade

A privacidade está sujeita à existência de quartos vagos. Os médicos não têm "um espaço para comunicar uma má notícia, não têm onde falar com um familiar". E a falta de uma sala de pensos leva a que, não raro, a enfermeira-chefe ceda o seu gabinete para que se façam curativos.

"Isto não são condições para tratar doentes", sublinha, categórico, Rui Vaz. "E são coisas que fui alertando ao longo dos anos aos meus superiores, esbarrando sempre nalguma barreira, não sei muito bem onde". À semelhança da pediatria, os problemas na neurocirurgia do São João não são de agora. "E ninguém parece reparar que estamos a dar estas condições a doentes, que na sua maioria, estão extremamente desorientados ou têm grandes limitações físicas", acrescenta Isabel Dias.

A enfermeira veio chefiar o serviço há dois anos e viu parte do hospital onde trabalhava há 30 anos com novos olhos. "Quando me mostraram as casas de banho, a primeira lembrança que tive foi de um campo de concentração". O dia-a-dia trouxe-lhe outras dificuldades: "No Inverno os familiares têm que trazer cobertores. O frio é imenso e ainda há sítios onde chove, nomeadamente numa enfermaria. Há buracos, frequentes pragas de formigas. As sanitas entopem quase diariamente" e Isabel Dias não pode conter a ironia quando olha para o chão colorido dos corredores, símbolo das reparações mais ou menos antigas do piso. Da última vez que este cedeu, uma enfermeira ficou com o pé preso. "Os profissionais estão exaustos", afirma.

"Não há razões para não acreditar que é desta"

Nesta segunda-feira, dia em que o PÚBLICO visitou o serviço, havia um corrupio silencioso de profissionais que iam às janelas do hospital ver para crer nas gruas que começavam a ser montadas. Os corredores do piso 8, para onde se devem mudar no início do próximo ano, já estavam cortados. As obras arrancaram e Rui Vaz acha que "não há razões para não acreditar que é desta".

A administração do São João estima que a empreitada, orçada em seis milhões de euros e que inclui também o serviço de neurologia, esteja terminada até Janeiro do próximo ano. Contactada pelo PÚBLICO, não comenta o atraso no início desta remodelação, nem as actuais condições do serviço de neurocirurgia, assim como a previsão das obras na ala pediátrica.

Esta última questão veio a público no passado dia 10, depois do Jornal de Notícias ter dado conta de que havia crianças a fazer quimioterapia nos corredores do hospital. O assunto levou deputados do PSD, CDS, BE e PAN a questionarem ao Governo. E o ministro da Saúde a pedir a intervenção da Inspecção-Geral das Actividades em Saúde para esclarecer se a situação poderia ter sido evitada. Garantindo que “o dinheiro está disponível” – estão 22 milhões de euros à espera de luz verde –, Adalberto Campos Fernandes disse que os procedimentos para o avanço das obras serão lançados dentro de duas semanas. O tema não deve, no entanto, ficar de fora das perguntas dos deputados ao ministro na comissão de Saúde desta quarta-feira.

Rui Vaz também considera que o desbloquear da empreitada na neurologia se deveu à intervenção directa do ministro. A reivindicação, no entanto, começou internamente e há que recuar mais de uma década para perceber a sua dimensão. Em 2007 iniciava-se a última de quatro fases de obras na neurocirurgia, planeadas para que o serviço espelhasse os centros de referência europeus, com cuidados intensivos, cuidados intermédios, bloco e internamento. "Todos os outros têm condições óptimas", só este último nunca abandonou os contentores que foram pensados "para um ou dois anos", recorda Rui Vaz. "Mas houve a crise económica e pararam as obras aqui, como parou o Túnel do Marão, por exemplo. O problema é que depois disso tudo foi sistematicamente adiado".

A "linha vermelha" foi ultrapassada em Novembro do ano passado. O médico não se "sentia com coragem de continuar a tratar doentes nestas circunstâncias". Pediu a demissão e viu a equipa de enfermagem apoiá-lo. Os cerca de 50 profissionais escreveram ao conselho de administração e iniciaram uma espécie de greve de zelo, recusaram-se a participar em todo o trabalho que fosse além da prestação de cuidados aos utentes.

O caso tornou-se público, as reclamações subiram na hierarquia da tutela e o presidente da Administração Regional de Saúde do Norte e do Ministro da Saúde vieram "ver as condições deploráveis em que os doentes são tratados". Rui Vaz acha que, nessa altura, ambos "perceberam que é impossível funcionar assim".

O que o director do serviço não deixa de constatar é a ironia das condições em que se trabalhará durante mais um ano: "Um serviço que é centro de referência para epilepsia refractária, que faz cirurgias diferenciadas, nomeadamente de Parkinson, anda a tratar doentes com tumores com este chão".

No ano passado, segundo dados do Gabinete do Cidadão do hospital enviados ao PÚBLICO, foram registadas 93 reclamações e sugestões sobre infra-estruturas e amenidades.

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