Uma guerra igual ao litro

O problema de Soldado Milhões continua a ser o problema dos filmes que, em Portugal, querendo ser como os outros, de "indústria", acabam por ser iguais ao litro.

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Há vários truques de ilusionismo digital ao longo de Soldado Milhões – tiros, multiplicação de figuração, fumo, aviões, céus negros sobre as trincheiras. Servem para fazer um filme “como os outros”. Tem algo de demonstração e isso não torna antipático o filme de Gonçalo Galvão Teles e Jorge Paixão da Costa, isso de fazer como os outros fazem nos outros países. Recordando as palavras da produtora Pandora da Cunha Teles, na semana passada ao Ípsilon: “Não podemos fazer todos os mesmos filmes, há uma necessidade de variedade. É preciso haver filmes que toquem as pessoas, é preciso ter-se noção de que se podem fazer filmes de guerra, de ficção científica, comédias, além de dramas e filmes de arte-ensaio.”

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Há em Soldado Milhões, então, um sonho de normalidade: tornar rotina o que é excepção. Isto é: sonhar com a indústria no país da arte-ensaio. E tocar as pessoas. Mas a preocupação começa por ser ganhar a guerra com o pré-fabricado: os tiros e o fumo dos efeitos especiais. O espectador estará à espreita, a ver se se deixa enganar. Pandora de novo: contava que algumas decisões sobre o que filmar e não filmar dos feitos heróicos de Aníbal Augusto Milhais, conhecido como Soldado Milhões, na batalha de La Lys tiveram como preocupação que um espectador não olhasse para uma cena e dissesse que se notava que tinha sido feita com pouco dinheiro. Nota-se.

Com este caderno de encargos Soldado Milhões só podia ser armadilhado. É a armadilha que coloca no seu caminho o cinema que se põe a sonhar com “indústria” e que resulta paroquial – ninguém lá fora quer meter dinheiro nele; ninguém lá fora o quer ver, também. Afinal, isso não é nada industrial.

Desde logo, e por causa da vigilância, a suspensão da descrença é dificultada em Soldado Milhões: não se é embalado pelo filme, vigia-se o filme, os efeitos especiais. Depois, os planos, os movimentos de câmara, para além daqueles que tentam disfarçar o orçamento (o que até podia ser criativo exercício de prestidigitação), são quase sempre a versão pobre do pré-fabricado encomendado: não são criados e "desejados" pela história que contam, vêm por catálogo. E quando o filme não nos está atirar areia das trincheiras para os olhos, mostra-se cego.

O desejo de normalizar a excepção tem de ser ainda desejo de cinema. Aqui confunde-se “naturalismo” com piadas e “francesismos” – será que desconfia tanto da capacidade das personagens e da narrativa em tocar os espectadores que escolhe sempre um remate cómico para as cenas, destruindo qualquer possibilidade (anti-)heróica da guerra de cinema? É incapaz, sobretudo, de construir personagens. E é incapaz de lhes dar peso e de as sujar: apenas João Arrais, na versão mais jovem de Aníbal Augusto Milhais, e Isaac Graça, mais em background, estão tocados por alguma densidade que poderia ser “trágica” se o que os rodeia não fosse um infantil e limpinho brincar às guerras... Já Miguel Borges, que interpreta Aníbal Augusto Milhais em 1943, a contar à filha Adelaide, durante uma caçada, como tinha sido 1918, é atirado aos lobos: sem tiros, sem fumos e sem aviões como distracção, o filme não sabe como se ocupar.

O problema de Soldado Milhões continua a ser o problema dos filmes que, em Portugal, querendo ser como os outros acabam por ser iguais ao litro. 

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