As mulheres da revolução que ficaram fora da fotografia

Em Elas Também Estiveram Lá, Joana Craveiro e o Teatro do Vestido percorrem a Avenida da Liberdade, em Lisboa, até ao Cinema São Jorge, levantando histórias invisíveis dos bastidores do 25 de Abril.

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BRUNO SIMÃO

A história delas dava um livro. Não um filme, mas um livro. Talvez por uma necessidade de inscrição, arrisca Joana Craveiro durante o espectáculo Elas Também Estiveram Lá – que até 21 de Abril se apresentará em sessões para 20 espectadores no Cinema São Jorge, em Lisboa. Elas estiveram lá, na resistência anti-fascista durante os anos do Estado Novo, no 25 de Abril, no Processo Revolucionário em Curso (PREC), mas parecem invisíveis nos livros que documentam os vários períodos pré, durante e pós-revolução. Mas muitas delas, das mulheres que Joana Craveiro tem entrevistado ao longo dos últimos anos, desvalorizam o que têm para contar, dizem que as suas memórias ou as suas palavras não têm qualquer interesse. Daí um livro e não um filme. Apenas para documentar e não se perder, já que não acreditam que alguém a não ser elas próprias possa retirar utilidade de tal leitura.

Elas Também Estiveram Lá é mais um espectáculo a brotar desse tronco comum das produções do Teatro do Vestido que é a monumental palestra-performance Um Museu Vivo de Memórias Pequenas e Esquecidas, levantamento de testemunhos da vida e da resistência durante a ditadura e nos anos de ressaca que se seguiram à revolução. Ali se construía uma história oral e afectiva, das gentes e não apenas dos acontecimentos, fugindo das narrativas oficiais e académicas, numa exploração da transmissão da memória política em Portugal. “O espectáculo e a actualização constante dos episódios, dos livros, das pessoas que nos querem contar a sua história vão acontecendo ao longo dos dias”, descreve a criadora ao PÚBLICO. “É um movimento imparável, tanto que temos como projecto fazer uma instalação física desse museu em permanência, para as pessoas poderem aceder ao arquivo.”

E isto porque a partir do momento em que Joana Craveiro começou a remexer nestes testemunhos e a apresentar o espectáculo daí resultante, desatou a ser procurada por muitos outros anónimos que viram no Teatro do Vestido um meio disponível para fixar as suas memórias. Os relatos, os documentos e os materiais foram-se multiplicando e gerando um tal acervo que, a cada nova criação, são muitas as pontas por onde pegar. Agora, em Elas Também Estiveram Lá, há, por exemplo, a vida contada de Teresa. No Museu Vivo original, era não mais do que uma linha num espectáculo de quatro horas e meia. “Foi alguém que encontrei uma vez, por acaso, numa sessão sobre o 25 de Abril, alguém que contou a sua história e de quem nunca mais me esqueci”, explica Joana Craveiro. “Isso aconteceu em 2014, mas só este ano é que lhe liguei e lhe perguntei se poderíamos fazer agora aquela entrevista que ficámos de fazer na altura.”

Uma geografia viva

Teresa Medina foi expulsa do Liceu António Nobre, Porto, em 1973, depois de ser apanhada na posse de 150 comunicados anti-regime, assinados por quatro direcções de associações estudantis. A sua expulsão motivaria uma concentração de estudantes exigindo a sua readmissão no liceu e a demissão do “reitor-polícia”. Tantos anos depois, é uma das mulheres que o Teatro do Vestido “rouba” ao seu anonimato histórico e que vemos surgir na Avenida da Liberdade, onde tem início o espectáculo, seguindo depois para o interior do Cinema São Jorge. Tudo começa na rua porque “a rapidez com que Lisboa se está a transformar” é algo que preocupa Joana Craveiro. “É muito difícil, cada vez mais, trabalhar nesta zona. Mas é um desafio e torna isto um acto político – estamos a reclamar o espaço público.”

O ritmo de transformação da cidade é uma fonte de preocupação também pela forma como facilita o apagamento dos factos históricos da geografia viva das ruas e dos lugares. Se Joana Craveiro conduzia o público no anterior Quando o Museu Vivo se Torna Físico até à porta da antiga sede da PIDE-DGS, na Rua António Maria Cardoso, para verbalizar a sua repulsa pela reconversão de um espaço de tortura e perseguição num condomínio de luxo, em Elas Também Estiveram Lá o trajecto segue até à pequena sala de projecção no interior do São Jorge que se acredita ter sido usada pelos Serviços de Censura durante a ditadura. Mais uma vez, é a "memorialização" que a move – uma relação com a memória que não deixe a História esconder-se e finar-se por detrás das paredes de edifícios pelos quais passamos todos os dias, ignorando os podres que guardam no interior.

Todos têm uma história

Esse jogo entre interior e exterior é outro dos motores deste espectáculo. Se nas emblemáticas imagens que registam o 25 de Abril no Largo do Carmo é tarefa inglória procurar rostos femininos, o Teatro do Vestido propõe-se agora desenterrar histórias que ficaram fora do enquadramento dos fotógrafos. Interior e exterior, portanto, porque aquilo que este espectáculo interroga e reflecte não é apenas a saída das mulheres para as ruas naquele dia de viragem histórica, mas também o interior doméstico a que estava condenada esta maioria silenciosa cuja independência era vista como uma ameaça e que até pouco antes da revolução não podia viajar sem autorização do marido, não tinha direito ao divórcio (a menos que provasse ou forjasse a prova do adultério) nem podia acender um cigarro sem que se pensasse que ia "com todos”. Uma maioria silenciosa à qual finalmente, depois do 25 de Abril, foi permitida a ousadia de ver O Último Tango em Paris, ali mesmo, no São Jorge.

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BRUNO SIMÃO

Também ali mesmo, na Avenida da Liberdade, outra Teresa se faz escutar, pela voz de José Afonso. A Teresa Torga que o músico descobriu nas páginas do Diário de Lisboa, fotografada impiedosamente na sua nudez às quatro da manhã enquanto dançava pela rua, e que lhe inspiraria a canção com o seu nome do álbum Com as Minhas Tamanquinhas, em que Zeca sentenciava que “mulher na democracia/ não é biombo de sala”. Para fora de casa então, finalmente inscritas na cidade e na história de resistência do país, todas estas vozes demasiado anónimas para imaginarem que a sua vida tivesse interesse algum para ouvidos estranhos.

Foi isso também que lhe disse a livreira com que Joana Craveiro se cruzou, por acaso, quando ao preparar este espectáculo entrou num alfarrabista em busca de livros de Maria Lamas. A conversa acabou por encaminhá-la até um armário nas traseiras onde estava guardada uma substancial colecção de livros de e sobre mulheres portuguesas. “Se calhar sou eu a romantizar a relação dela com aquele armário”, diz Joana Craveiro, “mas naquele momento da nossa conversa parecia uma coisa quase de ‘tenho aqui um segredo’”. Desse encontro resultou a recolha de um outro testemunho que vemos ser dramatizado no espectáculo, à luz da profunda convicção da dramaturga de que “todas as pessoas têm uma história para contar”. “Aprendi com um grande historiador oral, o Alessandro Portelli, que devo deixar as pessoas falarem porque quero saber o que é importante para elas, qual a agenda delas, e não a minha. Se elas percebem, se explico demasiado ou se viram o Museu Vivo, o discurso já vai ser condicionado.”

É uma das armadilhas possíveis no trabalho que tem vindo a desenvolver: a possibilidade de os entrevistados acabarem por dizer aquilo que sabem ou imaginam que Joana quererá ouvir. Outra é a fabricação de memórias que, nalguns casos, a autora, encenadora e actriz de Elas Também Estiveram Lá sabe serem impossibilidades históricas. “Mas eu não sou historiadora”, ressalva, “porque muito mais do que estabelecer um facto histórico que aconteceu realmente aquilo que me interessa são os mecanismos da memória e da sua construção”. Daí que ressoe algures neste espectáculo a dúvida acerca da utilização daquela sala de projecção do São Jorge. Uma dúvida tão sonora que se torna impossível fingir que não se escuta.

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