Não podemos ser todos Centeno

Os psicólogos não poderão estar solidários com decisões que impedem os portugueses de terem acesso a estes cuidados de saúde essenciais.

O actual Governo entrou em funções em 2015 com a promessa de iniciar um novo capítulo, devolvendo ao país a esperança que alguns tinham perdido, reforçando os serviços públicos e, simultaneamente, consolidando o trabalho de recuperação de contas públicas anteriormente iniciado. Especificamente na área da saúde, o Governo assumiu o grande (e urgente) compromisso de “mudar o paradigma”. Apostar na prevenção da doença e na promoção da saúde e recuperar o investimento, nomeadamente em recursos humanos, sublinhando em Programa de Governo a necessidade de contratação de psicólogos: “Reforço das capacidades dos cuidados de saúde primários, através do apoio complementar em áreas como a psicologia [...].”

A Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP) entregou ao Governo, a seu pedido e nos primeiros meses de legislatura, um documento de contributos para esta “mudança de paradigma” intitulado “O contributo dos psicólogos para a sustentabilidade do SNS”. Desde a primeira reunião com a tutela que esta se comprometeu com o reforço de psicólogos no SNS, em especial para os cuidados de saúde primários, de forma a garantir a existência de recursos humanos especializados no comportamento que possam ser motor de uma política preventiva na área da saúde (e não só na saúde mental) e de um combate mais efectivo a doenças que afectam milhões de portugueses, nas suas diversas áreas de vida (na parentalidade, no trabalho, na autonomia...) e que são responsáveis por anos de vida perdidos como a diabetes (responsável em Portugal pela perda de mais de oito anos potenciais de vida), obesidade (responsável por 2,3% dos DALYs – Anos de vida perdidos ajustados pela incapacidade), depressão (3,8% dos DALYs), ansiedade (3,4% dos DALYs), entre outras.

A participação e intervenção dos psicólogos nesta primeira linha é custo-efectiva e compensada, não apenas na prevenção e resposta a estas doenças (e ao sofrimento e custos associados às mesmas), mas também na redução objectiva de custos em saúde, nomeadamente pela redução do excessivo consumo de psicofármacos em Portugal ou pela redução dos custos enormes das co-morbilidades destas doenças.

E se desde 2015 a posição do ministério foi esta, já em 2016 e 2017 iniciaram-se os anúncios públicos das contratações. Em 2017 foi repetidamente anunciada, pelo ministro da Saúde, a contratação de 55 psicólogos para os cuidados de saúde primários. No Verão do mesmo ano, a tragédia dos incêndios assolou o país. Milhares de portugueses em risco do desenvolvimento de uma perturbação mental em sequência destes acontecimentos não tiveram e não têm hoje acesso ao apoio psicológico mínimo indispensável nestas situações, ao contrário do repetidamente prometido (“o apoio psicológico tem que ser intensificado”, dizia o primeiro-ministro no debate quinzenal de 28 de Junho de 2017). Os serviços de Psicologia não têm capacidade de resposta. Espera-se cerca de seis meses por uma primeira consulta em Psicologia, depois, e por vezes, até um ano por uma segunda sessão de apoio psicológico (numa priorização das primeiras consultas, tendo claramente em vista a diminuição das listas de espera).

Pese embora a chamada de atenção de todos os relatórios, grupos de trabalho e task forces nestas áreas para a necessidade de investimento em mais psicólogos, ainda em 2017 o Ministério da Saúde esclarece que a não contratação de psicólogos e a não afectação dos cerca de 500.000 euros disponíveis para tal se devia à não autorização por parte do Ministério das Finanças (“nem um cêntimo de cativações na saúde”, dizia o ministro das Finanças).

Em 2018 é o próprio Orçamento do Estado a consagrar a contratação de 40 psicólogos através da alocação de verba específica para este efeito. Segundo o ministro das Finanças e conforme noticiou o jornal PÚBLICO, desde Março de 2015 entraram mais 8480 trabalhadores (3926 enfermeiros, 2795 médicos, 460 técnicos de diagnostico e 778 assistentes operacionais). Zero psicólogos (excluindo regularizações de vínculos). Estamos em Abril de 2018 e não foi contratado um único desses psicólogos nem sequer aberto o concurso. Qual a razão para a não contratação de psicólogos? Ignorância? Incompetência? Inconsciência?

Apenas algo bate certo neste processo, uma certa coerência entre o cumprimento de 80% do Programa da Saúde para a legislatura, amplamente anunciado pelo ministro da Saúde, e os 13% de crescimento de despesa na área da saúde desde o início da legislatura também amplamente sublinhado pelo ministro das Finanças: um e outro não incluem psicólogos. Um e outro não incluem um recurso fundamental para a alteração do paradigma da saúde em Portugal e para a prevenção das doenças com determinantes comportamentais

Por isso, não podemos ser todos Centeno. Os psicólogos (e quem deles mais necessita e a eles não acede) não são Centeno pois não poderão estar solidários com decisões que impedem os portugueses de terem acesso a estes cuidados de saúde essenciais. Não podemos ser todos Centeno porque não se constrói confiança incumprindo reiteradamente. Pelo que verdadeiramente urge perguntar: porquê? Por que é que não se concretiza o previsto e cabimentado no que aos psicólogos diz respeito? Com que motivação, sr. ministro da Saúde? Com que motivação, sr. ministro das Finanças? Com que motivação, sr. primeiro-ministro?

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