Durante dois anos terá havido luz verde para agredir menores num lar

O Ministério Público acusou a directora técnica e quatro educadores da Casa dos Rapazes de Viana do Castelo de 35 crimes de maus tratos a jovens em perigo.

Vídeo regista maus tratos a crianças em lar de acolhimento I PÚBLICO

Durante dois anos, o insulto, a bofetada e a pancada na nuca terão sido um modo admissível de reprimir a experimentação sexual e outros comportamentos tidos como inapropriados na Casa dos Rapazes de Viana do Castelo, uma estrutura destinada a acolher jovens em perigo. O Ministério Público acaba de acusar a directora técnica e quatro educadores de 35 crimes de maus tratos.

O episódio mais grave remete para a manhã de 13 de Abril de 2017. Por volta das 8h, um rapaz viu outros dois a terem relações sexuais e alertou um educador. Esse e outros dois educadores precipitaram-se para o quarto indicado e já só encontraram o rapaz de 16 anos. Chamaram o de 13. Não se ficaram por um ralhete. Terão agredido os rapazes à bofetada e ao pontapé. Entre gritos que ecoaram pela casa inteira, um dos funcionários terá dito ao rapaz mais novo “que se ajoelhasse e colocasse as palmas das mãos debaixo dos seus joelhos apoiados no chão”. No fim, terão ordenado a ambos que fossem para a casa de banho colectiva. Os miúdos terão então sido forçados a tomar banho de água fria e a ficar ali, de pé, nus, até todos os outros acabarem o banho.

O assunto chegou nessa manhã aos ouvidos da directora técnica. Por volta das 10h, terá ido ao quarto questionar o rapaz mais velho. Ouvida a confirmação, ter-lhe-á batido na cara com um objecto que era um misto de moldura e relógio despertador, dizendo: “Ainda admites porco”. Terá depois instruído os dois rapazes para dizerem que tinham andado à porrada um com o outro.

Aquela responsável é acusada de 13 crimes. Segundo o despacho da acusação, a que o PÚBLICO teve acesso, várias vezes insultou e desferiu bofetadas e pancadas na zona do pescoço e da nuca aos jovens. Aconteceria nas reuniões semanais entre técnicos, educadores e rapazes para discutir o que correra bem e o que correra mal nos dias anteriores. E aconteceria noutras ocasiões.

Várias agressões físicas

O documento elenca várias agressões físicas para além da já descrita. Os motivos foram diversos: porque um rapaz lhe levantara a voz, por saber que outro tinha práticas sexuais de tipo homossexual ali dentro, por considerar que um jovem tinha sido mal-educado com ela, por saber que outro faltara às aulas.

O problema extravasou as paredes da casa há cerca de um ano. Propagou-se um zunzum pela cidade. Cartas anónimas circularam. A informação chegou ao Ministério Público e ao centro distrital da Segurança Social. Já em Junho, duas educadoras fizeram uma denúncia.

Instituto da Segurança Social, a entidade tutelar do acolhimento residencial, em articulação com o centro distrital, mandou averiguar o que se estava a passar e nomeou uma equipa de acompanhamento. Quatro rapazes foram transferidos. Cinco funcionários foram constituídos arguidos.

A instituição suspendeu as funcionárias que denunciaram o caso. O Instituto da Segurança Social pressionou a instituição a afastar os arguidos. No dia 16 de Novembro, a Casa dos Rapazes anunciou que os cinco funcionários tinham pedido para serem afastados e que os seus pedidos tinham sido aceites. A directora técnica foi destituída do cargo no início deste mês.

Um não foi acusado

Um dos arguidos era um técnico que o MP decidiu não acusar por insuficiência de indícios. Surge depois no rol de acusados a directora técnica.

Licenciada em Educação Social a trabalhar na Casa desde 2005, assumiu a direcção técnica em 2016. O lugar estivera vago durante meio ano e a violência estalara. Em vez de a reprimir, a nova responsável ter-se-á revelado favorável a práticas de contenção que passariam pelo uso do insulto, da humilhação e da agressão física. E terá transmitido aos funcionários que “aquele era o modelo de educação adequado aos jovens”.

A Casa dos Rapazes é composta por duas unidades residenciais. A Verde, no 1.º andar, destina-se aos mais velhos. A Azul, no 2.º andar, está reservada aos mais novos. Seria nesta última que tudo se passaria.

O coordenador da unidade Azul responde por sete crimes. Já trabalhava ali desde 1996. Auxiliar de acção educativa, assumiu aquele cargo em 2013. “De modo sistemático, quando contrariado ou como forma de repressão de comportamentos que considerava incorrectos, em diversas ocasiões, dirigiu aos jovens, em tom agressivo, insultos com o propósito de os humilhar, recorrendo também, por diversas ocasiões, à agressão física”, refere a acusação. Com uma “frequência praticamente diária”, dirigir-se-ia a eles como “camelo”, “burrinho do monte”, “meu caralho”, “abécula”, “cabrão”, “burro”, “otário”, “deficiente”, “estúpido” e “paneleiro”.

Num dos vídeos que integram o processo, ouve-se este arguido ordenar a um rapaz, de forma insistente, que tire as mãos da cara e outro rapaz a aconselhar: “Tira as mãos senão levas um soco, burro.” Ouve-se chorar. E a directora técnica dizer: “Pára de fazer esse barulho. Pareces um porco.” E ouve-se um estalo.

O terceiro arguido exercia funções de auxiliar de acção educativa desde Novembro de 2014. Acusado de nove crimes, também utilizaria um discurso agressivo no contacto diário e, por vezes, aplicaria castigos físicos. O quarto arguido, que ali trabalhava desde 2008, fazia o turno da noite. Teria adoptado “uma postura de rispidez” e, diversas vezes, recorrido à punição física. É acusado de quatro crimes. O quinto, por fim, trabalhava ali desde 2014 é acusado de dois crimes.

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