Vincent essencial

Depois da Fortaleza do Guincho, e após uma passagem por Barbados, o chef Vincent Farges voltou a Lisboa com um restaurante concentrado “no essencial” e onde promete uma “elevação sensorial” que passa por todos os sentidos. Uma revisão em cinco pontos do restaurante agora com uma estrela Michelin 2020.

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Vincent Farges Sebastião Almeida
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Vincent Farges Sebastião Almeida

Epur, o novo restaurante do chef Vincent Farges explicado em cinco palavras — um esforço de depuração que tem tudo a ver com a filosofia do espaço, no Chiado, em Lisboa.

Início

Quando, em 2015, Vincent Farges deixou a Fortaleza do Guincho para ir para Barbados, houve uma espécie de despedida no então showroom da marca de cozinhas Bulthaup, no Chiado, Lisboa. Aí, mesmo com as malas feitas para partir, o chef francês aproveitou todas as oportunidades para falar no seu regresso, dali a uns dois anos, para abrir um restaurante em Lisboa.

Agora, no mesmo espaço — totalmente transformado para receber o seu restaurante, que abre por estes dias (ainda em soft opening) — revela que no momento em que saiu do Guincho, o seu actual sócio, Pedro Mendonça, representante da Bulthaup em Portugal, já o tinha desafiado. “Quando fiz aqui o lançamento do showroom disse-lhe que era um desperdício ter um espaço destes e não fazer um restaurante.” Pedro ouviu o conselho e tomou a decisão — o local, no Largo da Academia Nacional de Belas Artes, seria um restaurante. “Fui para Barbados já sabendo que ia voltar”, confidencia Vincent.

Foi, contudo, preciso algum tempo para transferir a Bulthaup para as Amoreiras e, sobretudo, para fazer as obras de adaptação do espaço, que começaram há cerca de um ano. Desde então, Vincent tem estado a formar a equipa, “a pensar, a estudar”. E a ambição para este projecto foi crescendo. “Inicialmente era mais simples, mas depois decidimos queimar etapas, investir um pouco mais.”

O objectivo, diz, é “abrir um restaurante diferente de todos os outros”. Não quer competir com ninguém, garante. Mas não esconde que o projecto é “ambicioso e arriscado”.

Espaço

Foi o espaço que alimentou a ambição. “Não estava a ver fazer aqui uma coisa simples, um bistro”, afirma. “A vista pedia um grande restaurante, de fine dining, o local é perfeito para passar um momento espectacular, e não apenas do ponto de vista da gastronomia.”

A vista é (juntamente com a do vizinho Tágide) extraordinária. A entrada do restaurante faz-se pelo piso térreo, no Largo das Belas Artes, mas quando, depois de passarmos a cozinha, que conseguimos entrever, chegamos à sala de refeições, estamos ao nível de um sexto andar, olhando o rio e toda a cidade numa sala inundada de luz.

A parte inferior das paredes está coberta de painéis de azulejos, alguns dos quais dos finais do século XVII, o mobiliário é de madeiras claras e linhas simples, num estilo nórdico e, propositadamente, há pouco a distrair-nos da cidade que, seja de dia ou de noite, entra pela sala.

Num edifício pós-terramoto, com o sistema de gaiola nas paredes, foi preciso ter alguns cuidados, por isso a zona de refeições está dividida em três salas, uma delas interior. Mas nessa vai haver um ecrã onde serão projectadas imagens da vista da cidade, captadas por uma câmara colocada no exterior da janela — e também, em alternativa, imagens do que se passa na cozinha.

Nome

É um segredo bem guardado, que só agora se revela. Vincent conta que começaram com uma página em branco, escrevendo palavras que lhes iam ocorrendo. Foram riscando o que não servia, até que chegaram ao nome: Epur.

Vem da famosa frase atribuída a Galileu Galilei – Eppur si muove, traduzida como “e, no entanto, ela move-se”, que o físico e astrónomo italiano do século XVII teria dito após a sua condenação pela Inquisição, reiterando a certeza de que a Terra girava em volta do Sol. Acontece que “épurer”, em francês, a língua mãe de Vincent, significa depurar — e é precisamente isso que o chef pretende fazer.

“Acabou a hotelaria, as luvas brancas, os grandes serviços de prata”, diz. “Aqui tudo o que é superficial num serviço e numa cozinha desaparece. Vamos ao que é essencial. Não há nada que esteja no prato só para ser bonito. E o mesmo acontece no serviço.”

A linha de cozinha que aperfeiçoou ao longo dos dez anos que esteve na Fortaleza do Guincho não se alterou, mas apurou-se, centrou-se no que é realmente importante. E, por outro lado, conquistou uma maior liberdade. “Não sou um cozinheiro de moda, nunca fui. No prato só vai o essencial, não são precisos milhares de sabores e extravagâncias. Isso já não faz sentido. Os clientes voltam a querer cozinha e, em Portugal, em França e no mundo inteiro, a cozinha a sério está a voltar em grande.”

Ideia

A Ivity, agência responsável por desenhar o conceito do Epur, chegou a uma fórmula para resumir o que aqui vai acontecer: a depuração multiplicada pela elevação resulta numa gravitação degustativa ao quadrado.

Vincent explica: “Queremos elevar todos os sentidos do cliente, desde o momento da entrada. Temos a vista, temos um isolamento acústico espectacular, com 16 colunas de som para as três salas. O toque, com a madeira das mesas, que não vão ter toalhas (a toalha é para a hotelaria). As pessoas vão receber os guardanapos que foram feitos especialmente para nós pela Abyss Habidecor, com algodão do Egipto. São espectaculares. Depois, com a comida, vem o olfacto e o gosto. É uma elevação sensorial.”

Menu

O primeiro menu que os clientes recebem também vem reduzido ao essencial: uma folha com nove pratos divididos em conjuntos de três (destes, podem escolher-se quatro, seis ou oito pratos, por, respectivamente, 90, 125 e 160€, podendo juntar-se a harmonização com vinho por mais 40, 60 ou 80€). As primeiras três palavras “definem três domínios”: água, horta, terra. A água “pode ser do mar ou da ria, com peixes ou bivalves”, a horta são “legumes da época sublimados” e a terra traz “o melhor das nossas serras”.

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Vincent Farges na cozinha do Epur Sebastião Almeida

Seguem-se os pratos principais, divididos por mar, campo e recordações, que partem das memórias dos membros da equipa, “o que a avó fazia, coisas específicas de alturas festivas, outras que gostamos de comer do tacho e que vou reproduzir em pratos fine dining, que podem ser a chanfana ou a moreia, por exemplo”.

Também as sobremesas seguem a mesma lógica: chocolate, pomar e vintage, sendo esta inspirada por “o que fez a lenda na pastelaria”. Na altura do Natal pode ser uma selecção de sobremesas natalícias portuguesas “servidas de maneira a não lhes quebrar a alma”. Ou seja: “Não quero decompor o mil-folhas, quero manter o espírito de quem criou essa sobremesa. Por outro lado, posso ter sopas de cavalo cansado, que são pão e vinho e açúcar, mas em que mudo o pão para um brioche, mas mantenho a ideia original que é pôr o pão no vinho.”

Grande parte do trabalho de Vincent no último ano foi de pesquisa, percorrendo o país para encontrar produtos únicos e de qualidade excepcional. Por isso, o menu não revela logo tudo. É só depois de o cliente escolher a combinação de pratos que vai receber outro menu impresso com o que vai comer e que, sublinha o chef, pode sempre ser adaptado aos gostos, às alergias, às intolerâncias.

“Vamos depender dos produtores e não o contrário. Se o produtor de porco me diz que não consegue entregar mais, tenho capacidade para mudar a carta de um dia para o outro sem precisar de imprimir tudo outra vez. Por isso, quem vem cá não sabe o que vai comer.”

É Vincent em total liberdade, com inspirações que podem vir de todo o mundo e das memórias de toda a equipa e produtos que podem ser inesperados. “Se calhar no Guincho estava um pouco mais limitado nas escolhas, não podia servir sardinhas ou cavala, produtos mais baratos mas não menos bons, a meu ver, porque os clientes tinham outra expectativa. Aqui faço o que quero, já não posso ser catalogado de cozinha francesa, porque não é, não faço cozinha portuguesa, faço cozinha. Cozinho, simplesmente.”

Epur em três pratos

Maronesa

Inspirado por um prato clássico de tártaro de carne com ostras, Vincent opta aqui por não incluir o caviar (“não quero justificar que um prato é bom pelo uso de caviar”) e apresenta finas fatias de carne maronesa que fica em vácuo uma semana numa marinada de forte influência asiática, recheadas com daikon ralado, gengibre, molho de soja, por cima alga confitada e, por fim, a ostra escalfada a vácuo. Ao lado, uma maionese só com clara de ovo, muito azeite e a água das ostras, e alcaparras de capuchinhas avinagradas.

Molejas

Na base, um refogado com toucinho caseiro de porco preto, cogumelos girolles picados, cebola, alho, aipo picado, vinho branco, chispe de porco, tomate. Depois, molejas cozinhadas em manteiga noisette com sálvia e glaceadas com um jus de vitela refrescado por sumo de laranja. É acompanhado por vários legumes da estação, pequenas alcachofras, espargos selvagens, favinhas novas com azeitona galega, cebolinho e um pesto de sálvia.

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Molejas Sebastião Almeida

Chocolate

Parte da ideia de whisky, chalés de madeira, resina, fogo e é uma sobremesa toda construída à volta do chocolate com várias texturas: um biscuit sem farinha, um cremoso de chocolate de leite, pinhões e fava de chocolate caramelizados com flor de sal. O contraste vem com um gel de Chartreuse, digestivo feito em França com ervas da montanha, e o gelado de zimbro.

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A sobremesa de chocolate Sebastião Almeida
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