“Talvez o design moderno seja uma ideologia e a partir dela venham objectos”

“Espero que a minha alcunha não me faça parecer superficial, o design pode tornar-se muito superficial”. Chamam-lhe Capitão Orgânico. É um dos designers mais reputados e um pensador da evolução, da tecnologia, do descartável. Está agora com a portuguesa Vista Alegre.

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Ross Lovegrove é um autor de design pensante, um dos mais respeitados da sua geração Adriano Miranda

O tempo pertence a Ross Lovegrove. “Pessoas como eu querem aproveitar tudo de um dia, como um relógio a tiquetaquear.” E, ao mesmo tempo, o premiado designer sente que a cultura popular, de que não é fã — “não adiro a isso” —, o vê sobretudo como futuro. O designer que desenhou os primeiros walkmen para a Sony, partes de computadores da Apple e integrou o Atelier de Nîmes com o designer-estrela Philippe Starck e o arquitecto Jean Nouvel está na lista dos designers de produção dos grandes filmes de ficção científica. “Há uns anos quiseram pôr mobília minha em Star Trek, uns sofás na Enterprise. Eu disse que sim, mas pedi para ser fotografado no sofá com klingons. Só precisava disso. Mas eles não quiseram”, ri-se.

Agora, o seu candeeiro New Nature para a Artemide está em Black Panther e no ano passado a sua emblemática cadeira Go apareceu no filme Passengers, com Jennifer Lawrence. “Só costumamos ver o trabalho antigo de Frank Lloyd Wright, Pierre Paulin, ou obras de Ron Arad, Marc Newson” com esse aproveitamento do futurismo de primeira impressão, diz, “não é espantoso que o meio da ficção científica, que constrói cenários do futuro, considere o meu trabalho? Quero que o meu trabalho seja de hoje”, atenta depois de rir.

Galês nascido em 1958, tem uma presença tanto descontraída e aberta quanto cerebral e absorta. É um autor de design pensante, um dos mais respeitados da sua geração e que criou e levou agora a portuguesa Vista Alegre para o planeta da iluminação com a colecção E2H — Earth to Humanity, que trabalha a porcelana, os LED e o cristal da Atlantis sob nomes e inspirações como Nervi (um tributo ao arquitecto e engenheiro Pier Luigi Nervi).

Com o Ípsilon, faz uma conversa matinal pré-viagem e pós-desenho, porque nem se entrevista Ross Lovegrove — percorre-se o fluxo com ele — nem ele deixa esquecer como é beijado pela inspiração todas as manhãs. Anuncia que vai continuar a colaborar com a Vista Alegre — “agora vou fazer trabalho mainstream. Estive a desenhar esta manhã”, bate as palmas entusiasmado depois dos dois anos e meio de pesquisa para E2H. Não gosta de superficialidade nem de desperdício, criou mobiliário cobiçado e a escada DNA, mas também um carro solar conceptual para a Swarovski, um frasco de perfume para Narciso Rodriguez, uma garrafa de champanhe ou malas para a Louis Vuitton. Acumula prémios, projectos “que funcionem como contracultura da previsibilidade do resto da profissão do design”, exposições e itens nas colecções do Pompidou ou do MoMA.

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“Estes candeeiros são cerâmica mais forma”, diz o designer (colecção E2H — Earth to Humanity, da portuguesa Vista Alegre) Adriano Miranda

A sua rotina é criativa e evoca um mestre. “Acha que o [Mark]Rothko se preocupava se o cabelo estava bem?” Salta-se das apresentações para as perguntas. “Hoje há esta coisa estranha — todas as pessoas que são celebradas passaram pelo Photoshop. E as pessoas reais, os vencedores do Nobel ou Stephen Hawking? Ele nem sequer foi condecorado [pela rainha de Inglaterra]!”

Isso também acontece no design e na arquitectura, com os designers e os arquitectos-estrela. Muitos merecem o seu estatuto de celebridade, mas considera esse fenómeno perturbador? E considera-se parte dessa constelação?
É perturbador. Porque a nossa personalidade é sequestrada pela persona pública. Quando conheço pessoas muito importantes estudo a sua pele, a cor dos olhos, a forma das mãos, coisas que não obtenho pelos média. Todas as pessoas de topo que são tão cheias de si. nem sequer podemos telefonar-lhes porque estão no Dubai e vão a uma festa em Nova Iorque. Estão em todo o lado e em lado nenhum. Gosto de pessoas verdadeiras, especialmente neste contexto — sem os artesãos, o que faço nunca se concretiza. Eu não falo português mas tive uma conversa com a Isabel, que trabalha há 28 anos para a Vista Alegre e tinha o meu candeeiro na mão, acariciando-o como a uma criança e fazendo um trabalho belíssimo, nunca entediada porque tem [nas mãos] uma nova espécie.

Não é espantoso? Tento fazer coisas que não só as empresas gostem mas com as quais as pessoas que as fazem tenham afinidade. Por isso, essa coisa da mitologia. esqueça.

Isso é complicado porque queria saber como é que ganhou a sua alcunha peculiar — chamam-lhe “Captain Organic” [Capitão Orgânico].
Sim.

Gosta dela? E como é que, nesse sentido da organicidade, define a centralidade da forma no seu trabalho? As duas coisas parecem interligadas.
De facto fico muito bem de collants. Mas agora que nos livrámos das cabines telefónicas é difícil [trocar de roupa] (risos).

Como o super-herói do design evolutivo.
Um grande amigo meu inventou isso. E colou. Por isso ou me irrito com ela ou a amo. E o facto é que não faço um trabalho de grande leveza. Não sou superficial, tento produzir coisas de alta-definição e bem pensadas. Espero que uma alcunha como essa não me faça parecer superficial, porque o design pode tornar-se muito superficial.

Noutro dia li que Philippe Starck disse que “o design é só baton”. Duvido que ele o dissesse na cara de um cliente, mas até certo ponto tem razão. Estamos todos a criar poluição, é tudo tão descartável. Ele tem razão nestes tempos de marcas ubíquas às quais alguém tem de dar um sabor ou toque. Isso é mentalidade de decorador e não opero assim. Eu lido com o entusiasmo de, depois de três mil anos de experimentação com porcelanas, podermos elevá-la e fazer com que o que sai da cerâmica do século XXI diga algo às pessoas.

Quando eu era miúdo, se pensássemos num aspirador pensávamos “Hoover”. E dentro de cinco anos pensamos “carro” e será “Tesla”. Relaciono-me com um material ou indústria e tento transformá-lo. Para que, se se pensar em porcelana ou no cristal, se pense na Vista Alegre. Sofro num voo muito mau da Easy Jet para poupar algum dinheiro, mas à parte isso gosto de consciência universal. Para que se possa pôr um dos meus candeeiros no chão de um espantoso [hotel] Ryokan como o Tawaraya de Quioto e que as pessoas sintam que é japonês. Essa ideia algo camaleónica de como lidamos com o gosto global, que emana da sensibilidade do material e do objecto — é o poder do objecto. E quando o poder do objecto se entranha na consciência é que as pessoas se apercebem que foi uma empresa que os fez acontecer.

Como descreve então a forma destes candeeiros e a sua relação com a porcelana?
Não são uma coisa impensada do Capitão Orgânico. Se formos à [empresa de exploração espacial de Elon Musk] Space X, a única coisa que não é [fabricada por] eles são as minhas cadeiras Go, em magnésio. Há cerca de 200 ou 300 na cantina. A única coisa que seleccionaram fora da sua cultura, como algo que representa a modernidade, é o meu objecto — que é magnésio mais forma. Estes candeeiros são cerâmica mais forma.

O que faço é trabalhar com geometria de base. Com uma bonita matemática de base. Cinjo-me a formas sofisticadas, adoro-as. Não tolero design curvilíneo, blobby — ‘ah é orgânico’. Não é. As formas naturais são tão sofisticadas. Há algo na escala natural de um objecto. Quando uma árvore cresce, pára onde precisa naturalmente. Fica detida no espaço — são coisas que crescem a partir de forças intrínsecas, mas que são sustidas por forças extrínsecas. Uma baleia não continua a crescer no mar [apesar de] não ter restrições.

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No ano passado a emblemática cadeira Go apareceu no filme Passengers, com Jennifer Lawrence

Há um equívoco na descrição geral de “design orgânico”?
É demasiado simplista dizer que o meu trabalho se baseia numa energia natural ou na natureza da naturalidade. Não copio formas naturais, isso é tonto. A escadaria no meu estúdio parece uma espiral de ADN — gosto disso, porque é a essência da vida, mas não a desenhei assim. São aspectos acidentais. O design passa através de mim como um filtro, como alguém que está pouco impressionado com o que vê à sua volta. Nada apita no meu cérebro. A vida pode ser bastante entediante. Mas se se tiver um olhar criativo podemos extrair beleza e ser verdadeiramente elevados por coisas que parecem bastante comuns.

Como “filtro para o design”, como é que o design lhe aconteceu?
Fui às ilhas Galápagos com Richard Dawkins, o grande ateu que é provavelmente o herdeiro da teoria darwiniana. É uma pessoa difícil e uma das mentes mais espantosas de hoje. Depois de uma semana sobre evolução a navegar nas Galápagos percebi que talvez haja um gene da criatividade. Que algumas pessoas têm e outras não. E isso é uma coisa pesada para se dizer, não é? É o que torna a criatividade algo rarefeito. Richard Serra, [Jackson] Pollock, Rembrandt [van Rijns] — em toda a história da humanidade temos indivíduos que não têm necessariamente um pai que pintava, por exemplo, e simplesmente revelam uma habilidade incrível.

E na mesma viagem também concluí que a natureza é uma força, como a gravidade, porque continua, sempre. Nós, como espécie, desenhamos carros e outras coisas que não vêm da natureza, mas nós vimos da natureza. Somos agentes de mudança em nome da natureza. Por isso, nada é artificial no mundo. Isso é ridículo. Tudo tem de ser natural porque pegamos em materiais da Terra, lama e pedra e uma árvore e relva e areia e fazemos smartphones. Isso é espantoso.

Preocupa-se por tudo ser hoje tão descartável. O que é que alguém na sua posição pode fazer quanto a isso tendo em conta que hoje é o luxo, com o qual já trabalhou e que não é para todos, que é apresentado como alternativa e caminho para a sustentabilidade?
Não há um argumento limpo sobre isso. É um tema difícil. Porque o luxo pode ser definido numa série de formas. Os designers muito famosos e numa categoria particular falarão de produzir a cadeira mais barata possível para que possam fornecê-la a muitos maravilhosos humanos, mas ao mesmo tempo fazem um iate que custa 400 milhões para duas pessoas, coberto de pele de avestruz. Vejo muito esta hipocrisia. Enquanto designers é mais fácil virar para o luxo — malas, relógios — porque recebemos muito dinheiro, entramos [nesse mundo] e lidamos com pessoas ricas, que não têm gosto e que gastam dinheiro nas mesmas coisas. No carro, nas roupas, no casaco de cabedal, nas férias, no spa, no iate. Já estive envolvido nisso e é cansativo, não é real. É entediante, francamente.

Mas posso introduzir o luxo num objecto acessível. Como a minha garrafa de água [Ty Nant], que é luxo porque a água é um luxo para a maior parte do mundo. Tem que haver equilíbrio. O dinheiro é difícil de ganhar e fácil de queimar. O que é o luxo?

Chama a si mesmo um “tradutor da tecnologia do século XXI”. Porquê — e o que é que chamava a si mesmo no século XX?
[risos] Se queremos fazer coisas novas temos de trabalhar com as ferramentas do tempo em que vivemos. Agora estou a trabalhar com uma start up espanhola que tem um robot que está a imprimir em 3D mobília e vamos lançar em Abril em Milão [Salone del Mobile, um dos maiores eventos de design do mundo]. É a única coisa que vou fazer, para mim o espírito de Milão deve ser experimental. Não devia ser coisas de bom gosto e comerciais. Estou farto de madeira castanha e de um simpático bege. morreremos às mãos do bege.

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Ross Lovegrove é um autor de design pensante, um dos mais respeitados da sua geração porcelana Adriano Miranda

As novas tecnologias que estão ao nosso alcance têm de se tornar a base para uma terceira fase da evolução industrial. Sou designer industrial e a palavra “industrial” parece tão enfadonha. Afastando-nos de uma economia com base nos combustíveis fósseis. Só usar o material de que precisamos para fazer o que precisamos quando o queremos fazer.

Já desenhou muitos objectos quotidianos, como o walkman. Queixava-se de ser estimulado por poucas coisas no dia-a-dia — ainda é desafiante abordar um smartphone ou uns auscultadores? Quão difícil é criar algo como um iPhone, um objecto diário que também é um objecto de desejo?
Já ultrapassei isso. Já trabalhei com a Apple, com a Samsung, com a LG. Por um lado acho que nada há a fazer [pega num iPhone], mas por outro lado interessa-me ver como um dos lados é público e o outro privado. Ou como fazer um telefone a partir de lixo reciclado, não usando materiais nobres para algo que vai acabar numa gaveta, materiais moribundos, tecnologia dormente e obsoleta.

As coisas que faria? Provavelmente torná-lo-ia holográfico para que quando olhasse para dentro dele pudesse ver o universo e me desse a sensação de infinito. Mas não se pode falar assim com as empresas porque pensam que somos doidos.

Desenhei o novo interface do [relógio] Gear Sport da Samsung, que é como um eclipse solar. Porque acho que o tempo é todo cosmológico. Mas não desenhei o relógio em si e não gosto dele. É horrível. O que é óptimo na Apple é que os designers dão as ordens, definem o que é feito. Adoro trabalhar em coisas que sejam quotidianas, mas há um número tão limitado de empresas com as quais se possa trabalhar.

O que é que torna um objecto moderno?
É uma questão bonita. O erro que as pessoas fazem é não distinguir entre o que parece moderno e o que é moderno. Copiar uma linguagem design dos anos 1970 que parece espacial não é moderno. Qualquer coisa de que falemos em termos tecnológicos, como um smartphone, é moderno, porque tem por base a tecnologia.  

Aqui estamos, no século XXI, e as coisas modernas que criamos geralmente têm relevância global porque são centradas nos humanos e temos necessidades comuns. Falámos de luxo, e depois vemos na TV alguém a nadar em Bali e o mar está cheio de plástico. Não quero fazer parte disso. Poluição de embalagens. Desenhar uma bonita cadeira de plástico para a Moroso não vai parar ao mar, não vai. Há que qualificar as coisas. Ter isqueiros que custam 50 cêntimos ou chinelos que se partem e se deitam fora, embalagens de comida, garrafas. Talvez o design moderno seja uma ideologia e a partir dela venham objectos. Há que perceber que o mundo opera não em torno do dinheiro mas sobre o conceito, o design, do fabrico e venda de coisas.

Diz ser um “viciado em notícias”. Como é que está a aguentar-se nos dias que correm?
Sim, sou. E sim, as notícias são deprimentes. E tenho uma boa capacidade de filtrar isso. Vivo em Londres e decidimos deixar a União Europeia. Esse acto, bastante ridículo, tem grande impacto nas pessoas como eu. O valor da minha propriedade caiu 25%, as pessoas que trabalham comigo não são britânicas e muitas deixaram-me, vão para a Samsung e lugares semelhantes porque lhes dão segurança.

Pode dar vontade de rir, mas vejo notícias para relaxar. Não com as coisas terríveis que se passam na Síria ou no Íemen, pelas quais tenho vergonha como ser humano, mas leio a edição internacional do New York Times todos os dias em papel e gosto dessa passividade, de escolher o que quero ler, de ser o filtro, porque me canso de estar a olhar para o telefone [com tanta coisa a acontecer e a trabalhar]. As invenções mais notáveis que alguma vez saíram da humanidade vieram de pessoas sentadas em bancos, no campo, sozinhas com os seus pensamentos. Já nem tenho certezas sobre a BBC, quão neutra é. Sou viciado em notícias, mas consigo combater isso e posso substituí-las por ioga.

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