Beijos apaixonados para acabar com as discriminações

Festival Política regressa ao Cinema S. Jorge, em Lisboa, entre 19 e 22 de Abril. Para discutir as discriminações, os direitos humanos e os refugiados – com poucos políticos e muita sociedade civil. O vídeo promocional é lançado hoje e promete alguma polémica.

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Nuno Ferreira Santos

Um empregado de cozinha de um restaurante chinês sai pela porta das traseiras para despejar o lixo. Uma jovem de blusão preto e auscultadores ao pescoço aproxima-se, atira-se para os seus braços e beija-o longa e sensualmente. “Inês, avança para ele… agarra-o com força contra ti… Isso…”, “Deixa-te ir, ela é que controla”, ouve-se, a espaços no silêncio do set. “Continua… ” Dois minutos depois, já ambos estão sem fôlego quando se ouve “Corta!” e os dois suspiram ruidosamente de alívio, quase engasgados, e refilam. “É a chamada política em apneia”, comenta alguém, entre risos, na zona do estúdio na penumbra.

Por alguns minutos os dois jovens actores descontraem no alto de uma estrutura de andaimes, com plásticos e luzes, um cenário minimalista que servirá, horas depois, para gravar mais beijos apaixonados mas com outros protagonistas. Depois do cozinheiro chinês e da refugiada, no corredor de uma empresa, uma cigana cruzar-se-á com um executivo mulato que se dirige à máquina do café; dois atletas, ele brasileiro, ela muçulmana, cruzam-se na pista de atletismo onde treinam; e uma mulher negra, de 60 anos, será abordada pela patroa (uma “tia” da sua idade, bem conservada) quando limpa um espelho.

Todas as cenas terminam com um beijo envolvente, de desejo. Confuso? Se olharmos em volta, encontramos estas pessoas quase todos os dias na rua, nos transportes públicos, num café, no centro comercial. Porque Portugal é uma sociedade inclusiva, embora aqui e ali ainda subsistam, enraizados, alguns (muitos) preconceitos.

As quatro histórias são contadas, sem palavras e com muitos close-up da mudança de atitude nos rostos, num vídeo de um minuto que servirá para promover o Festival Política, que decorre no Cinema São Jorge, em Lisboa, entre os dias 19 e 22 de Abril. O spot é lançado hoje nas redes sociais e dentro de dias na televisão. Depois de a edição inaugural do festival, no ano passado, se ter debruçado sobre a abstenção, este ano o foco estará nas questões da igualdade e da não-discriminação, com especial atenção aos direitos humanos e refugiados. A experiência anterior correu tão bem que dos dois dias de actividades se passou para quatro, entre debates, simples conversas – como a que reúne deputados e participantes - exibição de filmes e performances, workshops, actividades para crianças, exposições e concertos.

João Gomes de Almeida, director criativo da agência 004, e Gonçalo Franco, da Krypton Filmes, que assinam o spot, têm desta vez uma responsabilidade acrescida. No ano passado, o seu vídeo para divulgar o festival questionava o alheamento dos eleitores que, ao não votarem, deixam que as decisões políticas acabem por ser tomadas por um estereotipado português preconceituoso – racista, chauvinista, homofóbico, xenófobo e saudosista dos tempos do Salazarismo. Se por cá o impacto foi limitado, o vídeo acabou por ser aproveitado em França, na segunda ronda das presidenciais, quando se extremou o apelo ao voto, por activistas contra Marine Le Pen mas também contra Jean-Luc Mélenchon: tornou-se viral nas redes sociais e teve mais de 1,2 milhões de visualizações. Em Portugal, o PS e o PAN também o usaram na campanha das autárquicas.

Portugal tolerante…

“Desta vez quisemos falar de Portugal enquanto país multicultural e tolerante, embora ainda persistam muito racismo e xenofobia na sociedade, de forma mais ou menos escondida”, conta João Gomes de Almeida. “Pegámos no preconceito e nas fobias e desconstruímo-los num filme que também se quer estético. Para mostrar que somos feitos de diversidade usamos quatro casais em que todos os elementos correspondem aos estereótipos mais básicos da sociedade. Há sempre alguma tensão entre os personagens, que depois evoluem para um beijo apaixonado”, descreve Gonçalo Franco ao PÚBLICO num intervalo das filmagens que decorreram num pavilhão na zona da Expo. “Portugal made of diversity, made of love” (Portugal feito de diversidade, feito de amor) é a ideia que fica no final do spot.

“Até podia ser um vídeo para o turismo; o que queremos mostrar é que tudo isto é possível em Portugal e que somos um país tolerante”, justifica João Almeida. “No ano passado [com a abstenção], fizemos pelo lado negativo, com uma realidade que é muito portuguesa [o homem a comer uma bifana no café e a comentar a actualidade, com referências à guerra do Ultramar] mas com um conceito universal; desta vez vamos pelo caminho do sentimento mais puro, que é o amor, e que é igualmente percebido de forma universal. Por isso nem precisa de diálogos.”

… ou só de fachada?

Bárbara Rosa, jurista de direito público, co-organizadora e fundadora do Festival Política com o jornalista Rui Oliveira Marques, lembra que o último relatório das Nações Unidas sobre migrações (2016) diz que “a cada minuto há 20 pessoas a serem deslocadas, de forma forçada, do local onde vivem. Temos assistido à manifesta incapacidade de resposta da Europa e à forma crescente como as migrações mexem com todos os preconceitos que temos, de forma mais ou menos dissimulada”.

“Há uma visão idealizada sobre a nossa capacidade de integração dos imigrantes. Temos a ideia de que acolhemos bem. Mas no plano concreto somos muito mais racistas, xenófobos, sexistas e homofóbicos do que realmente mostramos. Por exemplo, na forma como se aplicam as leis e até como o próprio Estado contribui para combater (ou não) esses preconceitos. Quantas vezes ouvimos falar de problemas de imigrantes com o SEF, das dificuldades na aplicação da lei da nacionalidade ou das regras de permanência no país?”, questiona Rui Oliveira Marques.

No ano passado, os organizadores tiveram alguma dificuldade para explicar o conceito do Festival Política. “As pessoas estranharam o nome porque associam o termo ‘política’ apenas a ideologia - de direita ou de esquerda. Tivemos que fazer um trabalho pedagógico de dizer que a política parte também da sociedade civil e que esta tem um papel e um impacto fundamentais”, conta o organizador. Porque tudo é política, até um beijo.

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