Há um cinema negro em Portugal?

Quem são os afrodescendentes que filmam? E de que é que falam, o que é que filmam? Por exemplo, histórias ligadas à imigração ou à demanda das suas raízes. Ou então thrillers de cast inteiramente negro.

Foto
nuno ferreira santos

Filipe Henriques já viajou com o seu filme para os Estados Unidos, Alemanha, Suíça, Cuba, vários países africanos, mas nunca o mostrou no circuito comercial em Portugal. Welket Bungué começou a pegar na câmara porque não encontrava um cineasta que fizesse os filmes em que ele queria participar. Lolo Arziki usou uma curta-metragem para falar da sua homossexualidade. Ana Tica e Mário Monteiro escolheram o documentário para fazer filmes-denúncia sobre questões comuns a alguns afrodescendentes em Portugal. Vanessa Fernandes também ainda não viu os filmes chegarem às salas “tradicionais”.

Mas Silas Tiny vai ter, pela primeira vez, um filme seu a testar a bilheteira, a partir de dia 19 de Abril, durante uma semana no Cinema Ideal (passa ainda nessa altura no programa Há Filmes Baixa!, no Porto).

Há um cinema afrodescendente ou negro em Portugal? Quem são os realizadores afrodescendentes que estão a filmar – e do que falam? 

Por duas vezes Silas Tiny partiu de Portugal para fazer um filme e acabou a fazer outro. Primeiro, em 2011, foi em busca de grupos musicais revolucionários africanos. Em Bafatá, no centro da Guiné-Bissau, encontrou uma personagem que o fascinou – Canjajá Mané, antigo operador de cinema – e fez Bafatá Filme Club (2013), produzido pela Real Ficção. Seguiu, então, a história de um cineclube mas sobretudo os fantasmas de um passado que cristalizou e se agarrou às paredes de um espaço vazio, centrando-se bastante nos portugueses que lá ficaram. Encontrou uma cidade que “vive em fantasmagoria em relação ao colonialismo” e que é para si simbólico do país. “Ainda estou a aprender a pensar este tema do colonialismo”, confessa-nos numa manhã em Lisboa.

A segunda longa, O Canto do Ossobó (2017), surgiu depois de mostrar Bafatá em São Tomé e Príncipe em 2014, reencontro com o país onde nasceu e de onde saíra 30 anos antes, mas momento forte demais para rodar o que quer que seja. “Foi um embate. Uma pessoa está fora muitos anos, e chega a um território que é suposto ser o seu, com coisas que devia conhecer e não conhece, com coisas com que devia sentir-se próximo mas não sente.”

Só mais tarde é que se aventurou a um novo regresso a São Tomé, desta vez para filmar As Constelações do Equador – ainda não concluído –, sobre as crianças da guerra do Biafra. Dessa rodagem, trouxe mais duas longas-metragens, inclusivamente O Canto do Ossobó, produzido pela Divina Comédia, e outra da qual diz ser prematuro falar.

Actualmente a trabalhar num armazém na Venda do Pinheiro, 35 anos, Silas Tiny exerceu várias funções. Esteve a atender telefones num call center durante cinco anos, trabalhou na área da logística durante outros tantos, foi pintor por um período em que acreditou ser este o meio certo para se expressar. Decidiu estudar na Escola Superior de Teatro e Cinema (de 2010 a 2013) aos 28 anos, mas isto já depois de concorrer com um filme aos subsídios do Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA) através da produtora Real Ficção. “Não vou dizer que sou um predestinado para o cinema. Precisava de um veículo para o que queria expressar.”

Foto
Miguel Manso
Foto
O Canto de Ossobó

O Canto de Ossobó terá uma segunda parte sobre a escravatura em Portugal, e aí a ideia é cruzar vários pontos de vista. Assumindo uma busca individual por aquilo que diz serem as suas raízes, o realizador coloca-se no centro, filmando as roças, denunciando as condições de trabalho escravo no arquipélago, que duraram até ao final da independência. Os restos de um período de prosperidade à custa da exploração laboral são mostrados ao mesmo tempo que ele intercala a História com a sua história. “São Tomé é um país pequeno em que foram construídas muitas roças. Não é possível não referir a escravatura.” Perceber as raízes da família, que teve origens escravas, fê-lo “ficar mais consciente” da realidade.

Mas atenção: “Não sou activista. Temos que ter cuidado quando misturamos activismo político com a criação artística. Pode dar origem a ideias de propaganda. Sou cineasta. Interessa-me falar do homem no geral, do homem negro e das minhas raízes. Mas sem simplismo. Não me interessa partir da política para falar de algo mas falar de algo que vai ser político.”

Com uma educação muito religiosa na Igreja Pentecostal, hoje é um crente não praticante, mas acha que isso marca o seu olhar. 

O filme é vendido como português – “eu sou português” – , foi feito com meios portugueses. Olhando para trás, lembra-se que na escola de cinema só tinha mais um colega negro, o realizador Welket Bungué. “Vivo sem pensar muito nisso.”

Se há uma falta de representatividade no cinema, acredita, está ligada a “um paradigma de beleza histórico, racista, em que a figura do negro não ia de encontro ao estabelecido” – que existiu e existe, analisa. “A representatividade em si não me diz nada, só estou preenchido se tiver alguma relevância, não quero apenas fantoches.”

Mas reconhece que traz ao cinema português uma mais valia: “Vou falar de temas que para uma pessoa portuguesa branca não faz sentido falar, por exemplo, as minhas raízes africanas.” 

Cíntia Gil, directora do Doc Lisboa, refere que têm recebido muito poucos filmes de afrodescendentes portugueses. "O Canto do Ossobó foi uma surpresa maravilhosa. Não só porque é de um afrodescendente, mas sobretudo porque é um olhar finíssimo sobre o que surgiu dos nossos processos coloniais (neste caso em São Tomé e Príncipe). O presente de alguém de vem dali e vive cá não é mesmo que o de outros, porque a história é outra, e porque lhes é profundamente opaca: a narrativa oficial portuguesa é branqueadora de processos muito destrutivos que duraram muito tempo, como o modo de prolongar as relações entre senhores e escravos em novas formas de exploração económica, cultural e simbólica", afirma.

Foto
sebastião almeida
Foto
O Espinho da Rosa

O preconceito de que “o negro não vende”

No Verão de 2016, Maíra Zenun organizou, com a sua Nêga Produções, uma Mostra Internacional de Cinema na Cova da Moura. A ideia era ter um clima de festival de bairro em que se exibissem ao ar livre as obras de cineastas negros, com conversas no fim. Foi buscar filmes de vários países africanos, do Gana a Angola ou Moçambique, mas também do Brasil e Portugal, num evento que trouxe pessoas de fora do bairro, gente que “nunca tinha posto o pé na Cova”. 

Conta-nos: “a ideia era criar um espaço para nós negros, para obras menos comerciais”. “O cinema é caríssimo e para se conseguir fazer um filme nos moldes comerciais gastam-se milhões”, afirma a curadora, também realizadora com Luzia Gomes da curta A Cidade e o Amor (2015). “Tem cinema gay, tem cinema para mulheres, tem cinema para crianças: porque não mostrar cinema negro?”, afirma.

O festival foi produzido na “base da guerrilha” com todo o material emprestado e zero de custos na divulgação. Os constrangimentos financeiros são muitos. Comprar uma boa câmara ou alugá-la é caríssimo; não a tendo, vai ser complicado conseguir a qualidade técnica que permita depois colocar o filme nos espaços comerciais. “A garotada pode fazer filme no celular mas nunca vai poder ampliar esse filme para o cinema, perde qualidade técnica”.

No final do ano, desenvolveu a curadoria do projecto Afrotela, organizado pela AfroLis, onde se exibiram filmes com o mesmo conceito no centro de Lisboa, na Casa Mocambo, e na Cova da Moura, na Tabacaria Tropical.

Em Portugal têm aparecido realizadores negros, mas são precisas políticas públicas também para o cinema, defende. “É muito difícil ver um filme realizado por um negro no circuito comercial, até nos cinemas Medeia, mais independentes. Há produção, mas não é absorvida. Quando falo em cinema negro refiro-me a quem pensa a obra, à equipa. É diferente ser eu a contar a história da minha avó ou ser você. É o velho provérbio, enquanto os caçadores contarem a história, os leões nunca vão ter uma página oficial no livro.”

É por isso que além de tudo é necessário ter agentes na distribuição e na exibição disponíveis para passar os filmes, refere. Por exemplo, Filipe Henriques, realizador de um filme “absolutamente comercial”, à Hollywood, “tecnicamente excelente” não entrou no circuito “e tinha tudo para isso”, afirma. 

Nascido na Guiné-Bissau em 1979, com nacionalidade portuguesa, já foi premiado várias vezes com o seu thriller que envolve pedofilia, vingança e morte – O Espinho da Rosa (2013). Actualmente disponível na americana Kweli TV, esteve em 35 festivais, recebeu 11 prémios, foi cabeça de cartaz do Fantasporto em 2014 e seduziu eventos como o americano Pan African Film Festival ou FESPACO, um dos mais famosos festivais de cinema africano.

A história da Dama Pé de Cabra foi adaptada pelo realizador para grandes audiências, com uma linguagem cinematográfica marcadamente comercial. 

Autor de várias curtas, como Heaven or Hell (2010), sobre os constrangimentos e impossibilidade de uma relação interracial, ou Vejo-te quando lá chegares (2005), onde aborda questões religiosas, Filipe Henriques filmou sem apoio financeiro. O Espinho da Rosa custou 65 mil euros. Foi rodado em 2012 em 16 dias, recebeu apenas apoio logístico da produtora onde trabalha desde 2006 como desenhador de som, a Plural, tudo em 16 dias – mas levou 10 anos a ser concebido, confessa-nos num café na zona de Almada.

O Espinho da Rosa é uma novidade no panorama nacional pelo facto de ter produção portuguesa e um elenco exclusivamente de actores negros, composto por Daniel Martinho, Ângelo Torres ou Ciomara Morais. O que o levou a escolher um elenco com actores negros para um filme que não está sequer centrado em questões raciais, ao contrário de outras das suas curtas? Achou que a Dama Pé de Cabra era um mito africano (depois descobriu que não). Queria criar modelos na “comunidade negra para contrariar a ideia da inferioridade” que está constantemente a ser veiculada. E, por último, em Portugal há bons actores negros que não “são frequentemente vistos no cinema de um ponto de vista positivo”.

Foto
Paulo Pimenta
Foto
Dance, dance, dance

Chegou a reunir-se com uma grande distribuidora como a Nos. Perguntaram-lhe por que é que não tinha um actor branco no filme. E muitas vezes chamavam-no depois de ler o guião só que assim que o viam “o discurso mudava”. “Ninguém me conhecia. Não quero pensar que seja por causa da cor da pele. A justificação que encontro é que as pessoas querem que o filme se venda e sendo maioritariamente com negros, não conhecidos, isso podia dificultar a colocação a nível comercial. Havia o preconceito de que os negros não vendiam e não tinham condições financeiras para ir ao cinema.”

Isso, acredita, caiu por terra quando chegou no ano seguinte a novela A Única Mulher e filmes como Black Panther se tornaram um sucesso.

Quando se começou a falar de O Espinho da Rosa, uma das questões que lhe colocaram depois de lerem o guião foi sobre uma das personagens: “Diziam-me: ‘Não existe um chefe de polícia negro, não existe um bom advogado negro’. Como não? Existe!”, exclama-nos. “Mas mesmo que não existisse, estamos a criar um efeito que pode ser positivo, um modelo.” Não tem dúvidas, também, de que “há uma crescente necessidade de os negros se verem representados no cinema de uma forma que enaltece”, afirma o realizador formado na Universidade Lusófona.

A escrever a sua segunda longa-metragem mas já com mais de uma dezenas de curtas no currículo, quer agora fazer “um percurso inverso”: conquistar o mercado para “mais tarde começar a fazer aquilo que” quer. “Fui casmurro e comecei a fazer aquilo que queria.”

O risco de representar “o outro”

Vanessa Fernandes (1978) tem várias obras: três curtas, como Mikambaru, história da relação proibida de um casal interracial e do racismo da família dele, um homem branco, ou Si Destinu, sobre a circuncisão genital feminina, e o documentário Dance, dance, dance, pesquisa sobre dança em África ocidental, todas de 2016. “Reconheço-me como realizadora afrodescendente quando faço os meus trabalhos. Quando escrevo um guião, a tendência é focar-me em temas que tenham a ver com as minhas origens”, diz esta realizadora portuguesa do Porto, que nasceu na Guiné-Bissau e esteve anos a viver em Macau. “O meu trabalho vinca a questão dos cruzamentos. Enquadro as minhas personagens, que são também afrodescendentes, num contexto europeu. É importante vermo-nos representados, não temos que ser só europeus, só africanos”.

Como teve a oportunidade de comprar o seu equipamento na Alemanha, não tem constrangimentos em termos de produção e isso dá-lhe liberdade de falar sobre o que quer, sem precisar de uma produtora que a possa eventualmente condicionar. “Não é fácil. A nível de produção os portugueses não saem muito da caixa. O apoio financeiro é elitista e um espaço difícil de se penetrar. Sinto que o cinema português quase se auto-copia”.

Quando os afrodescendentes aparecem no cinema como “o outro” isso coloca questões: o que “pesa” é a “maneira como as personagens são trazidas para a história, por vezes, não como pessoas, mas sim como caricaturas cheias de símbolos para facilitar a compreensão do espectador”. Ou seja, “a credibilidade que se quer numa personagem encaminha-nos para lugares comuns, e acho que é a partir daqui que se devia trazer algo de novo”. Reconhece que esse é um desafio diário quando pensa nas personagens que quer representar. E se quem conta a história o fizer do ponto de vista pessoal “tem claramente muito mais informação e mais clareza nos detalhes, nos gestos”. Por outro lado, “deixar que ‘o outro’ possa contar a sua história é também saber escutar ‘o outro’.”

Se há um cinema afrodescendente? Lança a hipótese de o “trauma de produções de pouca audiência em Portugal” ter “cortado links fundamentais para o seu desenvolvimento”. Seria preciso coragem “para se investir numa nova geração de realizadores que vivem entre dois mundos e ouvir as histórias que temos para contar”.  

Mas é importante a presença de afrodescendentes que trazem outros discursos, novas linguagens e outras personagens. “As histórias são outras, não é nem cinema europeu, nem cinema africano, é alguma coisa ali no meio que ainda não encontrou o seu espaço de representatividade.”

Se é verdade que os meios digitais permitem alguma facilidade na produção independente, a questão é que a “distribuição fica sempre limitada a um circuito bastante específico”. “A limitação de público não ajuda a propagar a mensagem. Estes canais teriam de ser reinventados, mas talvez também parte de nós, afrodescendentes, encontrar os meios que estiverem ao nosso alcance para que não se cale a nossa voz.”

Foto
Mário Lopes Pereira

Protagonistas das próprias histórias

Foi por ter essa vontade de falar que Ana Tica, 38 anos, se juntou a Nuno Pedro e Toni Polo para realizar Nôs Terra (2011), documentário que segue a vida de jovens que nasceram em Portugal com origem cabo-verdiana e para o qual conseguiu um pequeno apoio através de um programa europeu. “O documentário parte muito desta necessidade de ver materializado algum do nosso discurso, tendo em atenção a questão da invisibilidade e de que há poucos meios em que podemos ser protagonistas e passar a nossa visão sobre as coisas”, diz Ana Tica.

Quando partiu para o terreno já sabia que locais queria filmar, quem entrevistar e que perguntas fazer: o pano de fundo eram os bairros periféricos, mas mais do que mostrar o espaço a ideia era mostrar o discurso.  

Tudo partiu de um projecto que Ana Tica iniciou em 2006 onde filmou, em videoclipe, vários MC’s. Percebeu que eram todos jovens filhos de cabo-verdianos. Ficou com tanto material que acabou por ultrapassar a questão musical.

Ser uma afrodescendente a pegar na câmara e filmar pessoas a levantar questões que lhe estão próximas “faz toda a diferença”. Até porque “a necessidade parte de nos vermos como protagonistas e há uma série de produções em que nos vemos como objectos de estudo. É importante sermos nós a escolher as temáticas e no Nôs Terra é isso: são conversas, há uma grande afinidade com as pessoas envolvidas”.

Pensado para passar em alguns festivais de documentário, Nôs Terra ficou disponível para visionar na Internet. “Foi um primeiro trabalho, há sempre questões técnicas”, afirma, para explicar os motivos que pensa justificarem o porquê de não ter tido muita circulação em festivais. Em Dezembro passou na mostra de cinema organizada pela Djass - Associação de Afrodescendentes, no Mercado do Forno do Tijolo, assim como os filmes de Vanessa Fernandes, Silas Tiny ou Welket Bungué. 

Esta não é de todo a sua área de trabalho: trabalha na Santa Casa da Misericórdia como técnica de desenvolvimento comunitário. Foi “fazendo as coisas de forma caseira”, durante um ano e meio, recrutando ajuda de amigos na “base do voluntariado”. Gostava de voltar a filmar, sim, “mas com a certeza de que tinha condições”. “Temos esta sede de nos ver e a estas questões no ecrã. Mas não basta estar lá, é importante perceber o que estamos a fazer. Queremos dignidade e não contribuir para reforçar os estereótipos”, sublinha. Por isso “faz muita falta” que o cinema que fala de afrodescendentes “seja feito connosco”.

Tal como em Nôs Terra, também em Manti Firme Mana (2016) a temática da imigração aparece. Maíra Zenun nota que esse tema é recorrente: “O título de português negro ainda está em construção, porque o Estado português nega-o.”

Foto
MÁrio Lopes Pereira
Foto
Manti Firme Mana Vera Correia

Manti Firme Mana, filme que surgiu num projecto colaborativo de Mário Monteiro com João Garrinhas, Carla Fernandes e João Moreira, foi feito sobretudo com boa vontade e por “pessoas com pica”. Actualmente Mário Monteiro trabalha na área logística de uma grande empresa, mas na altura, acabava o seu trabalho na construção civil e ia directamente para a linha de Cascais filmar.

Baseado em histórias reais, relata as vicissitudes de uma afrodescendente, mãe solteira, que tem de ultrapassar vários obstáculos por não ter autorização de residência, ser empregada doméstica a quem os patrões não querem assinar contrato, ter problemas de saúde e não conseguir pôr os filhos na escola. Mário Monteiro, ou Boss, refere que o filme é um espelho desse “voltar a tentar” em vários moldes, retratando ainda questões duras que uma mulher enfrenta dentro e fora da comunidade. “É pôr a mão na ferida.”

Diz: há muita gente que vai filmar bairros como o Casal da Boba, na Amadora, faz filmes nos quais os moradores não se sentem “representados”. Por isso surgiu “a necessidade” de produzir “uma realidade que vem de dentro”.

Quando o filme é exibido em escolas, nota que “há sempre um aluno que diz que é a primeira vez que vê no ecrã o que se passa no dia-a-dia”. Ou então o oposto: “Pessoas que não faziam ideia de que isto acontecia em Portugal.” Numa coisa acredita: “Quem está dentro do bairro retrata uma realidade que ninguém de fora consegue”. Por outro lado, reconhece, também é verdade que “não basta viver e estar, é preciso ter capacidade para mostrar”.

As histórias que não são contadas

Foi justamente por sentir que queria que fossem contadas histórias que ainda não tinha visto que o actor Welket Bungué decidiu pegar na câmara e filmá-las, sem meios nem estrutura de apoio. Tem várias curta-metragens (como Bastien e Mensagem, de 2016, e Buôn, de 2015), algumas já exibidas na RTP 2, Vã Alma, uma série criada para a Internet que está a passar no Shortcutz Lisboa, festival de curtas às terças-feiras, no bar O Bom, o Mau e o Vilão.

Formado na Escola Superior de Teatro e Cinema, afirma: “O que mais gosto de fazer é representar. A realização surge como atitude política porque senti que foi imposta essa responsabilidade de direccionar as narrativas sobre as quais eu gostaria de me ver envolvido. Acho pertinente dar voz a algumas figuras”.

Português com pais guineenses, Welket confessa que estas questões começam a tornar-se cada vez mais presentes na sua consciência social “por ser negro, originário de África mas de alguma forma assimilado pela cultura europeia e não me ver representado na ficção portuguesa”.

Por exemplo, centrado num jovem que cresceu numa instituição social e que regressa a casa da família de acolhimento, Bastien fala da vida na periferia de Lisboa, mas uma das coisas que lhe interessa é justamente desmistificar “a ideia da periferia” que já foi retratada, “dos jovens que habitam as zonas periféricas e que são maioritariamente filhos de imigrantes e estão confinados a essa realidade geográfica e urbana”. Ele teve um “percurso contrário”: viveu no centro de Lisboa, no Campo Mártires da Pátria ou Odivelas, depois de ter passado por um colégio interno em Beja, onde teve uma educação católica. Só mais tarde é que se mudou para Camarate, em Loures.

Foto
Kristin Bethge

Já viajou para alguns festivais e mostras nacionais e internacionais, mas Bungué quer ter os seus filmes no circuito comercial em Portugal.

Teve algum financiamento da Fundação Gestão dos Direitos dos Artistas, mas os filmes têm sido feitos sem o apoio de um produtor que “vá capturar financiamento”, afirma. “Não é fácil, nem é levado a sério, não é contado como algo possível. Eu concretizo mas há muitos que, por falta de estruturas ou de ferramentas, não levam o projecto adiante. Como não há acesso às estruturas, nem possibilidade de se organizar e fundamentar um projecto artístico e cinematográfico, as coisas ficam no campo das ideias”, lamenta.

Embora sinta que há matéria criativa no meio artístico afrodescendente, a concepção e execução estão condicionadas ao facto de não haver alianças com produtores que arrecadem parte do orçamento. “Entramos num ciclo vicioso. Não havendo fundo para realizadores emergentes, independentemente da sua origem, faz com que os produtores trabalhem com os que estão há mais tempo no mercado”.

A desigualdade coloca-se do ponto de vista artístico, “mas também identitário”: “Há narrativas que estão para ser contadas mas não há um sistema, uma estrutura que o permita. É quase uma guerrilha: vais filmar, não tens autorizações camarárias porque a estrutura é amadora, não consegues pagar às pessoas.” Ou seja, no fundo ser realizador, afrodescendente, é também estar sozinho “sem rede”.

A virtude de existir

Esta sensação de isolamento também marcou o percurso de Lolo Arziki, 26 anos, autora de duas curtas já prontas e de outros projectos a caminho. Uma nasceu de um exercício sobre a experiência homossexual, Relatos de uma Rapariga Nada Púdica (2016), e outra é sobre um projecto comunitário em Cabo Verde, Homestay (2016). 

Crítica do facto de a limitarem a uma “caixa” – “realizadora, negra, afrodescendente, africana” – porque “parece que não podemos ser só uma coisa”, Lolo Arziki refere que percebe que exista essa necessidade do ponto de vista político em Portugal, por causa da representatividade. Posicionar-se assim, acredita, é também uma forma de dizer: “A gente existe”. 

Formada em cinema pelo Instituto Politécnico de Tomar, lembra-se que ao longo da sua formação se confrontou com a ausência de representatividade entre professores e colegas. Mas impressionou-a sobretudo essa lacuna no conteúdo académico. “O cinema africano tem uma história, o cinema afro-americano também e em nenhum momento do curso passaram cinema onde existissem personagens negras como protagonistas.”

Estudar assim é um processo “muito solitário”, refere. “Os colegas colocam de parte, não acreditam que és capaz. A gente faz por amor e resistência, e tem que aproveitar para marcar presença política e física”, analisa. Na distribuição e exibição de cinema, nos festivais, a presença de afrodescendentes é quase nula; o mercado não é fácil porque “uma produtora não vai confiar no teu projecto, nem sabe que visibilidade ele vai ter”, refere. “As pessoas não estão habituadas ao negro que questiona. O corpo negro é estereotipado. O espaço do protagonismo não é pensado para o corpo negro”, lamenta, referindo que o mercado é “racista”, e as pessoas não conseguem trabalhar em cinema porque “o corpo negro foi pensado para trabalhos precários”, lamenta. “O nosso problema é bem mais complexo do que não haver um fundo de investimento para o cinema: a nossa existência é historicamente negada. Eu preciso de fazer uma luta para que a minha formação seja validada”.

Foto
Nuno Ferreira Santos

Agora na fase de enfrentar as burocracias de concursos, refere: “Sei que não são pensados para nós mas preciso de lá estar insistente e persistentemente”.

Porque não há mais afrodescentes portugueses a mostrar filmes? "Perguntemos antes porque não há mais afrodescendentes portugueses nas artes, nas equipas de cinema, nas escolas de cinema", responde Cíntia Gil. "A razão é complexa mas pode ser enunciada de modo simples", continua a directora do Doc Lisboa. "Porque o nosso país é classicista e porque o racismo surge nessa dinâmica. As classes mais frágeis económica, social, até politicamente incorporam também essas pessoas, remetendo-as para a invisibilidade. Pior, nada disto é discutido. Onde estão os pobres, os negros, os das periferias no cinema português, a não ser representados nos filmes pelos brancos, de classe média, dos centros urbanos? Isto é evidentemente uma generalidade, mas talvez seja importante ser assim posta, de uma vez por todas."

Voltamos, então, à pergunta inicial: faz sentido falar de um cinema negro ou afrodescendente? 

Talvez ainda seja cedo para perceber “uma estética ou uma gramática na produção de cinema negro português”, isto porque é recente e pequena, embora “já tão diversa entre si”, afirma , por outro lado, Ana Cristina Pereira, que está a fazer um doutoramento em Estudos Culturais na Universidade do Minho sobre como é que “os públicos não especializados se relacionam com as representações identitárias” [ver este texto sobre a história da representação dos negros no cinema português].

Mas os filmes feitos por negros em Portugal abordam temas relativos aos afrodescendentes, às periferias (como Welket Bungué), à hibridez cultural e à herança cultural (como Vanessa Fernandes e Lolo Arziki ou Celso Rosa), ao racismo e à discriminação (como Ana Tica e Mário Monteiro). “Não excluo da designação cinema negro o cinema menos político, como é o caso do thriller de Filipe Henriques, porque o simples facto de ser um filme feito por um negro, com negros, faz dele um filme político. Parece-me cedo, em Portugal, para restringir a designação. Mas creio que os filmes feitos por negros e negras serão cada vez mais políticos. Têm a enorme virtude de revelar um outro ponto de vista: o ponto de vista do oprimido”.

Isto depois de ainda neste século os negros – “e os ‘seus bairros’" – terem sido  “um filão muito apetecível para obter financiamentos, para fazer documentários”, critica. “Alguns desses filmes pouco mais fizeram do que alimentar estereótipos sobre ‘cultura da pobreza’, sobre ‘cultura de violência’”.

Por isso conclui: “Contra todas as possibilidades, no século XXI, começam a surgir realizadores negros em Portugal. A principal virtude do cinema negro português é existir”.

Sugerir correcção
Ler 4 comentários