A Companhia Nacional de Bailado quer dançar mais em pontas ou o problema é outro?

A contestação interna a Paulo Ribeiro tornou-se visível numa manifestação no final de Março. Há bailarinos que põem em causa o reportório que o director artístico vem escolhendo, mas a programação de Julho a Dezembro, apresentada ao elenco esta semana, tem potencial para serenar os ânimos.

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MIGUEL MADEIRA

O mal-estar de que se falava há já algum tempo tornou-se público no final de Março, quando os trabalhadores do Opart se manifestaram frente ao Ministério da Cultura para exigir mudanças “drásticas” na proposta de regulamento interno daquele organismo encarregue da gestão da Companhia Nacional de Bailado (CNB) e do Teatro Nacional de São Carlos. Entre reivindicações com 25 anos ou mais – um estatuto do bailarino por aprovar e uma sala de ensaio para a Orquestra Sinfónica Portuguesa, afecta ao São Carlos –, André Albuquerque, dirigente do CENA-STE (Sindicato dos Trabalhadores de Espectáculos, do Audiovisual e dos Músicos), fez saber que as relações entre o director artístico da CNB, Paulo Ribeiro, e os intérpretes se degradaram nos últimos tempos. Motivo? Os bailarinos querem dançar mais clássicos e ter uma palavra a dizer no que toca à programação. Será este o sentimento geral? O que se está realmente a passar na CNB?  

Entre os elementos do elenco e outro pessoal que está ou esteve ligado à companhia com que o PÚBLICO teve oportunidade de falar, e que preferiram não ver os seus nomes referidos, não há dúvidas de que a relação de parte dos intérpretes com o director artístico não é fácil. Também é verdade que, para outros, os mais velhos de um corpo artístico que tem 69 bailarinos, o consulado de Paulo Ribeiro tem sido sinónimo de mais trabalho, no palco e fora dele, em projectos paralelos (é o caso de Rui Lopes Graça, que, depois do polémico afastamento de Bruno Cochat, assumiu a coordenação dos Estúdios Victor Córdon, plataforma de trabalho para criadores e intérpretes onde a CNB e o São Carlos se encontram). 

“Há ainda muitos bailarinos na CNB que não tiveram uma formação superior diversificada, que treinaram o corpo para os bailados clássicos e românticos e é nesse reportório que se sentem bem”, diz uma antiga bailarina. “Podendo, fariam só Giselles e Dom Quixotes… Resistem ao contemporâneo porque os seus corpos também resistem.” A chegada de Paulo Ribeiro à companhia foi vista por alguns destes intérpretes como uma ameaça a este reportório histórico, uma ameaça que na presente temporada, a primeira assinada pelo coreógrafo, se veio, na sua óptica, a confirmar, continua a mesma fonte.

Numa das suas primeiras entrevistas depois de assumir funções, em Março de 2017, Ribeiro deixava bem claras as suas intenções à frente da CNB: “Quero ir buscar peças que foram feitas para a companhia e que vale a pena rever, mas sobretudo peças do reportório moderno e contemporâneo”, dizia ao PÚBLICO, na mesma altura em que denunciava o peso dos “meandros administrativos e de funcionamento do dia-a-dia” de uma casa que, até ali, só conhecia do lado artístico, como coreógrafo convidado. Ribeiro esperava, então, que 2018 lhe trouxesse um ritmo diferente e que, a pouco e pouco, tal como acontecera no Teatro Viriato, de que foi director durante anos, a CNB respirasse com ele. Parece que esse estado de simbiose está ainda longe.

Menos público

Na base da tensão que hoje se vive entre entre o director artístico e alguns bailarinos está, dizem os intérpretes, o reportório que Paulo Ribeiro tem escolhido apresentar no Teatro Camões, a casa da companhia, e que, de Setembro até ao final de Abril, incluiu apenas um clássico (O Lago dos Cisnes, coreografia de Fernando Duarte), tornando evidente a sua aposta quase exclusiva na linguagem contemporânea (três criações da portuguesa Tânia Carvalho entre Fevereiro e Março; Impromptus, da alemã Sasha Waltz, de 25 de Abril a 5 de Maio; e ainda Passo e uma nova criação para a CNB da italiana Ambra Senatore, de 18 a 27 de Abril). 

Catarina Grilo, 35 anos, há 17 bailarina na CNB, é dos que defendem que Ribeiro tem praticamente arredado da programação peças clássicas e neoclássicas que permitem aos intérpretes exibir a técnica em que muitos mais se destacam (e que exige que elas dancem em sapatilhas de pontas), afastando o público tradicional da CNB do Camões. 

“Os bailarinos da companhia têm qualidade para fazer tudo e mais alguma coisa, mas o ballet não pode ser só para o Natal. Numa companhia como a nossa, as sapatilhas de pontas não são só para pôr muito de vez em quando”, diz esta bailarina, admitindo que parte do elenco está preocupado com a possibilidade de as opções do director artístico virem a ter reflexos muito negativos na afluência de públicos (em 2017 o público rondou os 65 mil espectadores, incluindo as digressões). “Com O Lago dos Cisnes tivemos casa cheia, com a Tânia Carvalho – com todo o respeito que ela me merece como autora de um programa que, aliás, gostei muito de dançar – tivemos 40 ou 50 pessoas sentadas na sala.”

Paulo Ribeiro garante que é sensível às preocupações dos bailarinos, que diz serem capazes de agarrar tão bem o reportório clássico como o contemporâneo, mas, naturalmente, defende as suas opções. “Uma companhia como a CNB, a única em Portugal que não é de autor e que emprega bailarinos profissionais a tempo inteiro, tem de ser mais aberta, mais plural, mais versátil”, diz o coreógrafo que dirige esta formação desde Dezembro de 2016, altura em que substituiu Luísa Taveira, antiga bailarina e hoje administradora do Centro Cultural de Belém. “Ninguém consegue exportar a CNB com programas clássicos. Se queremos dar-lhe uma vocação mais cosmopolita, menos de consumo local, precisamos de uma programação diversificada em que o contemporâneo tenha peso, assim como o neoclássico e os clássicos revisitados à Mats Ek [coreógrafo sueco a quem se devem versões icónicas de grandes marcos do bailado como Giselle e O Lago dos Cisnes].”

Mas, para isso, é preciso dinheiro. Para a programação de 2018, confirma a administração do Opart, Ribeiro teve 800 mil euros, pouco mais de 14% do orçamento que coube à companhia (5,6 milhões), que vê anualmente a maior fatia das verbas que lhe são atribuídas alocada às despesas com o pessoal (4,1 milhões) e que é apoiada pela Fundação EDP com um montante que, no ano passado, foi de 375 mil euros (o valor de 2018 não foi ainda fixado).

Diz o coreógrafo que este ano teve um corte de 400 mil euros face ao valor com que Luísa Taveira fez a sua última programação. “Tem de se pensar muito bem o que se quer para esta companhia: queremos que recupere reportório incontornável, que dê espaço aos coreógrafos portugueses, que desafie criadores internacionais e que se projecte no exterior, ou queremos programar apenas para o Camões com sala cheia? Idealmente queremos as duas coisas. E queremos arriscar com os criadores portugueses excelentes, como a Tânia Carvalho, porque a nossa missão também passa por aí. É claro que os clássicos são importantes – por si e porque agradam ao público –? e é preciso mostrá-los, mas a forma como se apresentam depende de muitas coisas. Remontar um clássico é muitíssimo caro. Muito mais caro do que uma Sasha Waltz [uma das mais celebradas criadoras da dança contemporânea europeia].”

Mesmo com os constrangimentos financeiros, os bailarinos defendem que se trata de uma questão de escolha. “Quando o Paulo Ribeiro chegou parecia garantido o equilíbrio e a diversidade na programação que nós sempre quisemos, mas depois começámos a ficar assustados, parecia que o contemporâneo ia sobrepor-se a tudo”, acrescenta Catarina Grilo, também delegada sindical.

Fazer uma peça de George Balanchine, um dos maiores coreógrafos do século XX, que não seja Serenade, ou de William Forsythe, dois criadores que a companhia já dançou, exige, neste momento, uma renegociação de direitos, explica o director artístico. “Adorava trabalhar mais com o Forsythe e com outros nomes que têm uma linguagem contemporânea mas que criam para pontas, que reinterpretam o reportório clássico, mas isso também é caríssimo.”

Equilíbrio complexo

Carlos Vargas, há dois anos presidente do Opart, reconhece que “tem havido, de facto, diferentes pontos de vista sobre os assuntos” na CNB, mas que isso não põe em causa nem o presente nem o futuro da companhia. 

“Estou atento, vigilante, mas sereno em relação a tudo isto. Conheço o reportório e o percurso da CNB e tanto um como outro mostram-nos que há espaço para um equilíbrio inteligente entre os marcos da história da dança, remontados, revisitados, e o que é novo. O Paulo Ribeiro está à procura do seu caminho.” Explica Vargas que cabe ao Opart, entidade cujo modelo se constrói na base da negociação entre a administração e os directores artísticos, tanto da CNB como do São Carlos, dar-lhe latitude para o encontrar.

Os estatutos da companhia, lembra, não quantificam o número de peças clássicas, neoclássicas ou contemporâneas que tem de apresentar, mas exigem que esteja permanentemente inscrita no reportório internacional ocidental e que aquilo que dança não esqueça o que se faz hoje.

“A CNB tem funcionado na base do bom senso e tem mantido uma tradição cronológica bem estruturada, apresentando bailados clássicos e românticos, dançando peças dos Ballets Russes que também fazem parte da sua história, montando e remontando os Balanchines e os Forsythes que põem a companhia a dançar em pontas, mas de outra maneira, apresentando as Anne Teresas [Anne Teresa De Keersmaeker] e muitos coreógrafos portugueses de grande qualidade. Este equilíbrio é complexo, um desafio, mas encontrá-lo é uma responsabilidade extrema do Paulo Ribeiro.”

Não há, diz Carlos Vargas, qualquer motivo para duvidar de que seja capaz de o fazer e, por isso, a questão da sua continuidade à frente da companhia não se coloca: “Há futuro, como é evidente.”

E o futuro passa, garante Paulo Ribeiro, por criar condições para que a CNB seja verdadeiramente uma casa da dança, “um teatro nacional para a dança”, onde todas as linguagens caibam. “Gostava que a companhia fosse camaleónica, que pudesse apresentar-se em pequeno e grande formato, que rodasse por salas de variadas dimensões em todo o país e que fosse mostrar o que faz lá fora. Sinto que as pessoas a conhecem mal, mesmo cá dentro.”

Esta semana, o director artístico apresentou já aos bailarinos a programação de Julho a Dezembro, ainda que haja uma ou outra coisa por definir. No Festival ao Largo, em Julho, haverá Serenade, de Balanchine, e uma nova criação de Paulo Ribeiro “com pontas”; em Setembro as três peças de Tânia Carvalho (A Tecedura do Caos, Olhos Caídos e S) vão ao Rivoli, no Porto, e Quinze Bailarinos e Tempo Incerto, obra que marca os 20 anos de Rui Lopes Graça a coreografar para a CNB, vai ao Luxemburgo; Outubro trará de novo Impromptus, de Waltz, ou iTMOi, de Akram Khan. Duas remontagens unidas pelo mesmo compositor (Stravinski) estão reservadas para Novembro – o director da CNB pega em A Sagração da Primavera e o coreógrafo francês de origem albanesa Angelin Preljocaj n’As Bodas, peça que o antigo Ballet Gulbenkian dançou em 2001. Dezembro traz o clássico de Natal por excelência, O Quebra-Nozes, numa antiga versão de Mehmet Balkan, um ex-director, feita para a companhia. 

Catarina Grilo assegura que “os bailarinos ficaram contentes” com as propostas, porque “parece que as coisas vão mudar”. Paulo Ribeiro diz que este é, por agora, o equilíbrio possível. 

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