“As restrições menstruais atingem todos os aspectos da vida das nepalesas”

Em algumas regiões do Nepal, a segregação das mulheres durante a menstruação assume os contornos da chhaupadi, um ritual que passará a ser crime em Agosto deste ano. A activista Radha Paudel fala sobre o peso desta prática no caminho para a igualdade. “Não é fácil quebrar esta tradição que existe há séculos”.

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Radha Paudel, enfermeira e activista nepalesa, esteve em Portugal Manuel Roberto

Radha Paudel trabalha para desmistificar “rumores e ideias erradas” sobre a menstruação. No Nepal, em particular nas regiões remotas ocidentais, persiste a chhaupadi, uma tradição em nome da qual as mulheres são banidas de casa durante o período menstrual e têm que se abrigar em cabanas rudimentares, sujeitas a condições desumanas. A lei que proíbe esta prática entra em vigor em Agosto deste ano.

Mas para Radha Paudel, a segregação das mulheres durante a menstruação é transversal na sociedade nepalesa. Estima que, a diferentes níveis, ocorra em 95% do território. Chhaupadi é apenas a face mais visível. É por isso que trabalha para informar todas as pessoas — não apenas as mulheres nas comunidades, mas também governantes e líderes — sobre igualdade de género, que pode começar por questões tão básicas como a gestão da higiene menstrual. Para que a menstruação seja menos um estigma a pairar sobre as mulheres.

Numa visita a Portugal, a convite de um grupo de cidadãos que se juntaram para financiar a sua viagem ao Porto, a fundadora das organizações não governamentais Action Works Nepal e Radha Paudel Foundation fala da segregação das mulheres no Nepal e no mundo, da necessidade de uma solução sustentável e da chave para limitar os efeitos nefastos desta tradição: a educação.

A chhaupadi ainda é aceite em todo o Nepal? Como é lutar contra um tema tão sensível?
As restrições menstruais são praticadas por todo o mundo onde os nepaleses vivem. No Oeste do Nepal a segregação é visível. No resto do país, é invisível. Em algumas comunidades, as pessoas seguem as restrições na sua vida privada, mas não na vida pública. É muito difícil perceber se as pessoas seguem ou não. E não é fácil educar, fazer campanhas, ou lutar contra as restrições menstruais. As pessoas consideram que é religião, é cultura. Nepaleses nos Estados Unidos ou na Europa praticam o mesmo tipo de restrições como forma de preservar a sua cultura.

A situação mudou muito nos últimos anos? Quando é que começou a sentir-se a mudança?
A lei que proíbe a chhaupadi foi aprovada em Agosto passado, e só entra em vigor em Agosto de 2018. É uma boa lei, mas não é completa. Mas traz-me confiança a mim e a outras pessoas que trabalham nesta área. Podemos dizer às pessoas que está na lei e que se não cumprirem e continuarem a prática podem ser penalizados. Isto dá-nos muita esperança, mas ainda há um longo caminho a percorrer. É uma questão remetida ao silêncio, ninguém gosta de falar sobre isso. Muitas pessoas não respeitam o que faço. Mas continuo a fazer tudo o que posso, escrevo artigos, escrevo poemas, escrevo livros, continuo a fazer investigação, formações, campanhas. Há poucas organizações, e poucas pessoas que falem sobre isto. Ainda é visto como uma questão pequena, que só interessa a alguns. [Mas para mim] a dignidade de raparigas e mulheres durante o período é uma questão fundamental. Para assegurar uma menstruação digna, temos que pensar de forma holística em termos de educação, empoderamento, saúde, saneamento básico, ambiente. Temos que ver cada uma destas perspectivas.

Que impacto tem este tabu para a vida das mulheres?
As raparigas e as mulheres seguem diferentes tipos de restrições, são privadas de comida nutritiva, são privadas de ter um espaço limpo e higiénico, estão sujeitas a doenças decorrentes de infecções. São também privadas de educação, e no futuro serão privadas de oportunidades económicas. E, tal como eu, elas têm uma experiência traumática. Não se sentem dignas. Sentem-se sempre impotentes, humilhadas. As restrições menstruais atingem todos os aspectos da vida das mulheres, e todos os aspectos da vida em sociedade, no imediato, mas também a longo prazo. Por vezes também há mortes, causadas por picadas de animais, violações, frio extremo ou calor extremo, às vezes asfixia com o fumo por não terem ventilação. A minha mãe, as minhas avós, mesmo as minhas irmãs, não falavam sobre o sofrimento, seguiram todo o tipo de restrições sem fazerem uma única pergunta. Elas aceitaram. É uma cultura de tradição. Precisamos iniciar o diálogo a nível das famílias. A menstruação digna devia ser discutida entre pai e filha, entre irmão e irmã, entre mãe e filha. Precisamos debater a partir desse nível. A nova Constituição claramente menciona a vida digna para cada indivíduo, independentemente da sua cor, classe, casta, etc.. Também fala sobre liberdade, sobre o direito à habitação, ao ambiente, à saúde, ao emprego, à educação. Se não conseguimos resolver nas nossas próprias vidas a questão das restrições menstruais, como vamos conseguir aplicar todos estes direitos constitucionais?

Como é que se tornou activista contra uma prática tão arraigada na cultura nepalesa?
Quando tinha sete anos, vi sangue nas pernas da minha mãe. Foi assim que soube o que era a menstruação. Desde então, comecei a observar as actividades que a minha mãe e as minhas três irmãs tinham que fazer. Elas seguiam uma série de restrições relacionadas com a comida, com o toque e com a mobilidade. Tinham que ir para uma cabana lá fora. Também aprendi sobre o livro Hindu que falava sobre as restrições menstruais, e encoraja as mulheres e raparigas nepalesas a segui-las. Por outras palavras, aquele livro refere claramente que o sangue da menstruação é um pecado que sai da rapariga. Foi assim que comecei a pensar nisto. Não via valor nenhum em ser uma rapariga, cheguei a pensar em matar-me. Quando tive o período pela primeira vez, aos 14 anos, fugi de casa. Não queria seguir as restrições que as minhas irmãs estavam a seguir, porque isso me magoava muito, sentia que era desumano.

Manuel Roberto,Sibila Lind,Aline Flor

Comecei a questionar-me, comecei a desafiar-me, e quando fui para a escola de enfermagem, com cerca de 16 anos, aprendi anatomia e a fisiologia da menstruação e então senti-me orgulhosa, mesmo feliz, por ser uma rapariga. Quando voltei a casa, durante as férias, desenhei uma imagem e ensinei aos meus pais o que tinha aprendido sobre a menstruação. E desde aí na minha família não há problema. Continuamos a seguir as tradições religiosas, as festas, mas já não banimos as mulheres. Entretanto comecei a trabalhar nisso e foi assim que, informalmente, comecei a ser activista, num nível muito familiar, muito individual. Mas quando me formei como enfermeira, em 1998, fiz a tese sobre higiene menstrual. Descobri que a segregação não existia só na minha família, não era só na minha comunidade. Era uma prática também em Katmandu [capital do país], e tanto no Oeste como no Leste do Nepal. Foi nessa altura que comecei oficialmente a trabalhar nestas questões, a fazer o que conseguia, o que sabia.

Nas últimas notícias sobre uma mulher que morreu durante a chhaupadi, no início do ano, o marido dizia que não exigia à esposa que seguisse a tradição. É comum as mulheres submeterem-se ao ritual mesmo quando a família não o exige?
Apesar de sofrerem por causa das restrições menstruais, as raparigas e mulheres seguem-nas, mas dizer que ‘as mulheres é que estão a impor-se estas restrições’ é superficial. No Nepal, a maioria dos maridos ou irmãos, sacerdotes ou pais, não educam as raparigas. Podem até dizer-lhes em público “não vás, não sigas a chhaupadi”, mas na realidade não ajudam a educar. É preciso desmistificar os rumores, as concepções erradas, o que temos cá dentro. As raparigas e mulheres têm medo pelas famílias delas. Pensam que se não seguirem as restrições, o pai pode ficar doente, o marido pode ficar doente, o animal pode ficar doente, alguma coisa pode correr mal na família. Como e de onde é que essa ordem vem? Essa ordem vem através dos homens, das escrituras religiosas, escrituras essas que estão centradas nos homens e não se importam com as raparigas e mulheres. A nossa sociedade foi construída de uma forma em que as raparigas valem menos do que os homens. Não se fala sobre a dignidade das raparigas. Não se considera que os direitos humanos das mulheres são direitos humanos. E nunca falamos sobre menstruação, de como as mulheres podem quebrar estas restrições, não desmistificamos o medo, os rumores, as ideias erradas. Não é fácil quebrar esta tradição que existe há séculos.

Chhaupadi é uma tradição hindu, mas outras formas de “restrição menstrual” também existem noutros países, e a Radha estudou algumas. A segregação das mulheres noutras culturas também tem uma raiz religiosa?
Nos contextos nepaleses, no contexto do Sul da Ásia, está mais ligado à religião, à pobreza, à discriminação de género. Não é apenas uma questão de higiene, é muito uma questão de religião. A maioria das pessoas é hindu, mas outras pessoas religiosas, ainda que em menor número, também seguem as restrições no Nepal. A chhaupadi é visível no Oeste do Nepal, mas isolar raparigas e mulheres dentro de casa, numa casa separada, num canto do quarto, são restrições que existem por todo o país. Os nepaleses que vivem fora do país também seguem algumas formas de restrição, ao considerarem que o sangue da menstruação é impuro, sujo e mau. Isto independentemente da religião, da educação, da casta.

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Manuel Roberto

Em 1998, quando fiz a tese para o meu bacharelato, também descobri que as restrições menstruais podem ter outros nomes. Não lhes chamam chhaupadi, mas há segregação, há isolamento, e há estigma noutros países também. Encontrei o mesmo tipo de isolamento e restrições na Índia. Em alguns lugares eles também mantêm as mulheres em quartos separados, ou até numa casa separada, em particular no Norte da Índia. Também encontrei o mesmo nível de restrições no Paquistão e no Bangladesh. Seguem uma religião diferente, na maioria, mas mesmo assim consideram que o sangue da menstruação é impuro, sujo. 

Se olharmos para práticas em África, como no Uganda, Quénia, Tanzânia, também se praticam alguns tipos de restrições. Mas em África é diferente, tem mais que ver com a pobreza, não encontrei tantas ligações com a religião. Mas a segregação das mulheres é um problema em todos os lugares, não apenas na Ásia, não apenas em África, mesmo nos Estados Unidos e na Europa há formas de discriminação.

No Nepal, como tenta combater este estigma?
A Radha Paudel Foundation está a tentar educar diferentes stakeholders, para desmistificar os rumores e ideias erradas sobre menstruação. Temos trabalhado para assegurar os produtos de higiene essenciais durante a menstruação, já começámos a distribuir pensos de algodão reutilizáveis, e continuo a procurar apoios para termos pensos higiénicos biodegradáveis. E também gostaria que mulheres e raparigas pudessem ter pequenos negócios a produzir pensos reutilizáveis, para ganhar dinheiro enquanto vivem com dignidade durante o período. É uma win-win situation. Também estou constantemente envolvida em trabalho político, como membro da comissão do ministério da Água e Saneamento no desenho de políticas públicas, e também faço parte de diferentes redes nacionais e internacionais que trabalham para dignificar a menstruação. E continuo a fazer pesquisa para explorar a gravidade e magnitude do impacto das restrições menstruais na vida das raparigas e mulheres e da sociedade. É desafiador e difícil, pela falta de apoio financeiro. Tenho muitas ideias, e continuo a fazer isto de forma voluntária, mas poderia fazer mais se tivesse mais apoio. No dia em que comecei a viagem para combater as restrições menstruais, estava sozinha. Mas hoje, é um problema global. É uma questão dos direitos humanos. Estou muito optimista e sinto-me muito orgulhosa de não falar sobre mim. Não estou apenas a representar o Nepal, estou a ajudar raparigas por todo o mundo a sentirem-se seguras e viverem com dignidade.

Que caminho considera que o país deve seguir nesta área?
No que toca ao activismo menstrual, há muito poucas organizações a trabalhar. Algumas estão mais focadas em saneamento básico e acesso à água, não estão focadas numa abordagem holística. Para mim, garantir uma menstruação digna está para além de infra-estruturas ou pensos higiénicos. Temos que ver da perspectiva da água e saneamento, mas também da saúde, educação, empoderamento, ambiente. Se não nos preocuparmos com o ambiente hoje, o que é que poderá acontecer no futuro? Toda a floresta e os campos vão-se cobrir com pensos higiénicos não-biodegradáveis. Estamos à procura de uma abordagem sustentável no combate às restrições menstruais no Nepal e além.

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